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Ángel Rama mostra conexões entre mundo das letras e projetos urbanos na América Latina

Obra clássica do intelectual uruguaio ganha primeira edição brasileira mais de 30 anos após lançamento
O intelectual uruguaio Ángel Rama. Foto: Divulgação/Boitempo Editorial
O intelectual uruguaio Ángel Rama. Foto: Divulgação/Boitempo Editorial

RIO - Merece destaque a iniciativa da editora Boitempo de trazer de volta aos leitores o último e fundamental livro do intelectual uruguaio Ángel Rama, morto em 1983, ano da publicação original deste “A cidade das letras”. A edição renovada mantém a emocionada apresentação de Vargas Llosa, além do inteligente prólogo onde Hugo Achugar chama atenção para a compreensão fragmentada da cultura latino-americana causada pela crescente especialização de críticos e professores. Todo o contrário do que nos traz o ensaio de Rama, que, segundo nos diz o crítico literário e poeta, “abandona as estreitas lentes do engomado e retórico legado oficial com que nos entulham as Academias”.

Rama parte da ideia inicial de que as cidades latino-americanas seriam um “parto da inteligência”, da racionalidade, como um sonho de ordem, cidades ideais que deveriam ser regidas pelo ímpeto organizador traduzido por uma ordem social hierárquica. A ordem deveria ser estabelecida antes mesmo de a cidade existir em sua materialidade, ou seja, existir como palavra, como representação simbólica, de forma a se adequar às funções desejadas pelo poder absoluto dos colonizadores. Isso seria válido desde a reconstrução de Tenochtitlán, atual Cidade do México, em 1521, até Brasília, a capital projetada pelos intelectuais Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A pólis civilizada devia se opor à barbárie dos não urbanizados.

ESTUDO DOS INTELECTUAIS

Já o início da reflexão mostra sua atualidade e pertinência para pensarmos as cidades latino-americanas de nossos tempos, assim como a propriedade metodológica com que analisa o desenvolvimento e as modificações que as cidades vão sofrendo a partir de suas escritas, dos textos literários ou de reflexão crítica que representam.

Do período de conquista até o século XX, são os “donos da letra” que precisam ser estudados se quisermos compreender os suportes culturais e sociológicos das cidades e do continente, inclusive as por vezes conflituosas relações entre local e global no mundo contemporâneo. Se compreendemos que os intelectuais, durante o domínio espanhol e português, serviam ao poder mas eram também donos de um poder, podemos perceber melhor a sobrevivência de concepções coloniais — eventualmente escravagistas — entre membros da sociedade e sua frequente supremacia na cidade letrada.

Observando as cidades, seus nomes e mapas, Rama aponta para a existência de duas cidades em uma, especialmente nas metrópoles: a letrada e a real. As duas cidades, na verdade, não estão separadas, mas sobrepostas. A cidade física, com seus labirintos, e a cidade simbólica, cuja ordem é recuperada ou buscada pelos intérpretes que a decifram pelo raciocínio. Do mesmo modo, também na cidade escriturária coexistiam duas línguas: a pública, que devia ser a letrada, e a privada, popular e cotidiana.

Na cidade que se moderniza, o conceito de literatura se fortalece e se constitui como um discurso sobre formação e definição da nação, de modo que, no fim do século XIX, a constituição das literaturas nacionais é um triunfo da cidade das letras.

No entanto, a cidade real era a principal e constante opositora da cidade das letras, a quem a primeira devia ser submetida. A cidade letrada quer ser fixa e atemporal em oposição constante à cidade real, que só existe na História e se adapta às transformações da sociedade. Os conflitos são, portanto, previsíveis.

Seus membros privilegiados, os intelectuais, movendo-se por entre nacionalismo, populismo, caudilhismo e messianismo, forças crescentes na América Latina que se moderniza, assumem a função de ideólogos. Ao lado dos escritores, os jornalistas surgem como parceiros da condução de um pensamento crítico, movendo-se pelas estreitas margens de autonomia que lhes era possível.

Educação popular e defesa do nacionalismo, essa parece ser a fórmula de constituição da democracia latino-americana. É o momento em que a cidade letrada se torna politizada e a crescente importância do Estado impõe o debate, já duro, pelo poder.

Por toda a obra, o autor, ao mesmo tempo em que fala da América hispânica, apresenta o “hemisfério brasileiro da América Latina”. Ao protagonismo de Rodó, José Martí, ou Alejo Carpentier e sua cidade barroca, juntam-se Manoel Bonfim, Sílvio Romero, Euclides da Cunha com a dúvida sobre as funções civilizadoras diante da carnificina de Canudos e, mais adiante, Darcy Ribeiro, todos devidamente identificados por um índice remissivo criado ao final do volume.

Se ao tratar da cidade letrada Rama recorre à literatura, não se recusa também a oferecendo o prazer de sua escrita. A linguagem metafórica encontra seu espaço e, em determinado momento, explica melhor do que os recursos ao culturalismo a cidade que nos apresenta: “A cidade ideal (...) era também uma invenção com apreciável margem original, uma filha do desejo que é mais livre que todos os modelos reais e ainda mais desbocada, e que, além disso, ao tentar realizar-se, entraria em amálgama enlameado com a insistente realidade circundante”.

Obra importante para compreendermos a trajetória dos intelectuais latino-americanos e a formação de nossas cidades, “Cidade das letras” é texto decisivo para entendermos também o Rio de Janeiro, essa cidade letrada que, sendo colônia, foi metrópole e capital do Reino, espaço de conflito diário entre o ideal e o real. Num momento em que espaços de sociabilidade dos homens de letras nas grandes cidades, como as livrarias, desaparecem, cabe refletir até que ponto são as mudanças nos mapas da cidade, especialmente os espaços dos centros — a City —, que determinam o fim desses locais de encontro e troca, como a Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio, ou a emblemática La Hune, em Paris, ou se é a própria cidade das letras que se desfaz. Ou, o que seria melhor, se reconfigura, aceitando novos trânsitos e novas formas de troca.

*Beatriz Resende é professora titular de Poética na UFRJ e autora de “Contemporâneos”, entre outros livros