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Cleonice Berardinelli, (quase) 100 anos de poesia

Perto do centenário, professora especializada em literatura portuguesa lança livro, faz recital e participa de dois documentários

Cleonice Berardinelli lê poemas de Mario de Sá-Carneiro nesta segunda-feira, no Real Gabinete Português de Leitura
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Agência O Globo
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Fábio Seixo
Cleonice Berardinelli lê poemas de Mario de Sá-Carneiro nesta segunda-feira, no Real Gabinete Português de Leitura Foto: Agência O Globo / Fábio Seixo

RIO - Cleonice Berardinelli achava estrada e ponte a coisa mais linda. Numa viagem, caiu de amores por um viaduto, “uma coisa lindíssima, feito na pedra, com ferro mesmo, muito ferro”. Ela já amava a matemática e estava prestes a entrar na faculdade, por isso decidiu: ia ser engenheira. Para azar dos viadutos e sorte dos estudos literários, ela tomou um caminho diferente. Hoje, aos 98 anos, é uma das maiores especialistas do mundo em literatura portuguesa, especialmente na obra de Fernando Pessoa. Longe de ser apenas uma memória viva, a também imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) segue em atividade incessante na construção de uma obra grande como os viadutos que admirava — a ponte entre Brasil e Portugal.

Os projetos dos quais Dona Cleo, como é chamada, participa são muitos. Nesta segunda-feira, às 17h, no Real Gabinete Português de Leitura, a imortal faz um recital de poemas de Mario de Sá-Carneiro, ao lado da colunista do GLOBO Adriana Calcanhotto, que vai cantar e tocar. Acaba de chegar às livrarias a edição de “Mensagem”, de Fernando Pessoa, organizada pela pesquisadora a partir de uma primeira edição com anotações do poeta, que traz ensaios dela sobre a obra.

Ao mesmo tempo, Dona Cleo participa de dois documentários: um no qual lê Pessoa com Maria Bethânia, ainda sem título, a ser lançado em agosto. O outro, do diretor carioca Guilherme Begué, está em fase de gravação e deve ser lançado ano que vem.

De onde ela tinha fôlego para isso, prestes a completar 100 anos?

— Acho que o fato de estar sempre trabalhando me mantém bem. Porque estou sempre interessada em algo, é bom, eu me sinto viva. Se eu ficasse jogada para um canto, eu ia me sentir morta — afirma Dona Cleo.


Poema que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Cleonice
Foto: Reprodução
Poema que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Cleonice Foto: Reprodução

No Real Gabinete, a imortal apresenta um dom muito amado por seus amigos e alunos: a declamação. Filha de um oficial do Exército e uma dona de casa, ambos amantes de poesia, a professora já recitava desde os 4 anos. Eram poemas que ela guardava com sua memória (até hoje) prodigiosa. A professora teve aulas de declamação e encantava os adultos desde menina.

— Eu me lembro da paixão dela pelo magistério. Ela tem o gosto da poesia, a fruição, e pratica a leitura não só como exercício de reflexão e pensamento, mas faz também uma leitura material. Ela tem o gosto de ler, perceber o ritmo, o andamento. — afirma Antonio Carlos Secchin, ex-aluno e colega da professora na ABL.

A relação fulminante com a obra de Fernando Pessoa começou há mais de 70 anos, quando um professor apresentou o poeta a Dona Cleo — fato que mais tarde a transformou na autora da primeira tese sobre poeta no Brasil (e segunda no mundo), ainda nos anos 1950. Até hoje seu encanto diante das palavras do português se renova.

— Ela tem um espanto diante da poesia toda vez. Cleo tem uma rítmica extraordinária. Mesmo sabendo de cor, quando ela se depara com um poema que ela já leu milhares de vezes, ela ainda se emociona. É uma coisa linda — diz Adriana Calcanhotto.

Adriana começou a receber um pedido da professora, que também já foi feito a Bethânia: chega desse tal de Dona Cleo. A imortal quer ser chamada só de Cleo. Mesmo o “professora”, que Bethânia costuma usar para se referir a ela, ela costuma pedir para ser substituído.

— Não consigo que Bethânia me olhe na mesma direção. Sou a “dona”, a “professora”. Ela me pede bênção. Coisa bonita, não é? — diz Cleo, rindo. — Mas são coisas que botam os outros acima, me tiram do convívio na mesma direção, que é muito gostoso.

Com a ajuda de duas fiéis escudeiras, Vânia e Solange, suas secretárias, Dona Cleo continua a produzir. O próximo lançamento será uma antologia de Mário de Sá-Carneiro. Ela já havia feito uma antologia do poeta em 1958, mas a nova edição será ampliada com mais poemas, além de contos e cartas do autor. Além dos ensaios críticos da pesquisadora. Com “Mensagem”, o livro faz parte do projeto de reeditar (em publicações ampliadas) toda a obra de Dona Cleo. Por isso, ela tem passado os últimos tempos relendo o que escreveu.

Como acontece a alguns, é comum que o peso de tradição literária cale alguns poetas no nascimento. E isso aconteceu com ela. Sim, Cleonice Berardinelli escreveu poemas desde criança — mas parou, depois de ler “tanta coisa boa”. E nesse cipoal de coisas boas, estava a obra de alguns de seus amigos, como João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, e Drummond. Fora as traduções que fez de cantigas medievais portuguesas, sua obra poética segue inédita

Enquanto faz tudo isso, uma ex-aluna visita a professora semanalmente a fim de gravar entrevistas para uma biografia da imortal — e já tem 30 sessões de 2h30m a 4h gravadas.

— O perigo é não acabar, porque eu sou contadeira e é uma vida muito comprida. Enquanto eu estiver falando elas gravam. Depois elas tratam disso, e eu fico lá do céu fiscalizando — ri Dona Cleo.