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Como um poeta iraquiano traduziu ‘Ulysses’, de James Joyce, para o árabe durante 30 anos

Salah Niazi, radicado na Inglaterra, começou a trabalhar na obra em 1984 para esquecer os horrores da guerra em seu país natal

O escritor irlandês James Joyce, autor de “Ulysses”: seus admiradores comemoram no dia 16 de junho o “Bloomsday”
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C.P. Curran/Divulgação
O escritor irlandês James Joyce, autor de “Ulysses”: seus admiradores comemoram no dia 16 de junho o “Bloomsday” Foto: C.P. Curran/Divulgação

LONDRES - Há 30 anos, o poeta iraquiano Salah Niazi começou a traduzir a obra-prima de James Joyce, “Ulysses”, para o árabe. Corria o ano de 1984 e a guerra Irã-Iraque já completava quatro anos. Horrorizado com o que acontecia no seu país — que havia deixado na década de 1960, após a chegada do partido Baath, de Saddam Hussein, ao poder —, o poeta decidiu encarar a empreitada como uma forma de distraí-lo do sofrimento. Ele contou a sua história ao canal inglês “Channel 4 News” como parte do “Bloomsday”, comemorado pelos fãs do escritor irlandês em 16 de junho. Este é o dia em que se passa toda a ação em “Ulysses”.

— Eu estava protegendo a minha saúde das notícias da guerra no Iraque. Eu não podia suportar assistir televisão dia e noite. Muitas amigos meus, iraquianos exilados na Europa, sofreram ataques cardíacos — disse Niazi. — Então, para proteger a minha saúde, eu disse para mim mesmo que precisava fazer algo muito difícil para esquecer as guerras e as mortes. Foi assim que comecei a traduzir “Ulysses”.

A obra é um desafio hercúleo para qualquer tradutor, pelas dificuldades de transpor do para qualquer idioma o estilo de Joyce, suas referências e alusões. No caso do árabe, pesam as raízes geográficas, culturais e religiosas completamente diferentes do inglês. Passagens consideradas obscenas são outro obstáculo. Por causa delas, “Ulysses”, lançado em 1922 na França, foi banido nos Estados Unidos até 1933 e, no Reino Unido, até 1937.

O poeta iraquiano, entretanto, não pensa que a “obscenidade” seja um problema para leitores de países árabes mais conservadores.

— Sua prosa é tão elevada, está no plano da poesia. É cheia de poesia porque ele próprio é um poeta. Joyce é um músico — afirma Niazi, que compara o romance com as esculturas gregas e as prostitutas retratadas por Picasso em algumas de suas pinturas. — São pessoas nuas na sua frente e você não pensa em pornografia, mas na sua beleza. Quando você está imerso em “Ulysses”, você não pensa nessas coisas.

A edição em árabe do livro foi dividida em três volumes. O primeiro foi lançado em 2001, em Damasco, na Síria, e está na terceira edição. O segundo foi publicado em 2010, também em Damasco, e ganhou uma nova edição no ano passado. O terceiro, que inclui o famoso solilóquio de Molly Bloom, chegou às livrarias no mês passado. Contudo, devido à guerra civil na Síria, a obra foi editada em Beirute, no Líbano.

Nos 30 anos em que se dedicou à tradução de “Ulysses”, o que começou como uma fuga da tragédia da guerra terminou como uma experiência verdadeiramente transformadora.

— (Após ler o livro) você é uma pessoa diferente. Você tem o direito de mudar seu nome, seu país, qualquer coisa, realmente. Esse é o impacto do livro em qualquer leitor — finaliza Niazi.