São Paulo, quarta-feira, 12 de janeiro de 2005

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Em "Rhythm Science", DJ Spooky aproxima as pontas entre a filosofia e a eletrônica

RITMO é um VÍRUS

Tobin Poppinberg/Divulgação
Paul D. Miller, o DJ Spooky, que lança o livro-CD "Rhythm Science", pelo selo do instituto americano de tecnologia MIT Press


DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Se há pensadores no universo das batidas eletrônicas, um deles é certamente o DJ e escritor norte-americano Paul D. Miller, 34, também conhecido como Spooky that Subliminal Kid.
Cria da agitada cena hardcore de Washington, filho de um ex-Pantera Negra, Miller passou sua infância dividido entre dezenas de milhares de discos e livros que se acumulavam em sua casa.
Deu no que deu: um DJ-artista-escritor ou, como sugere o título de seu novo livro, "Rhythm Science", um cientista do ritmo.
A carreira como DJ Spooky começou na década de 90, quando se mudou para Nova York após estudar filosofia e literatura francesa em uma faculdade de Maine.
Foi nessa época que começou a perceber que os discos e as mix tapes que botava para tocar nos clubes da Big Apple eram mais do que músicas, mas "mensagens em uma garrafa" que serviam para promover um resgate da memória e um intercâmbio cultural até então sem precedentes -programas como o Napster ainda não existiam naquela época.
Cinco discos, diversas apresentações e uma dúzia de artigos em revistas como "Village People" e "Raygun" depois, Miller/Spooky dá continuidade a seu fluxo alucinante de idéias em "Rhythm Science", que, bem ao estilo do autor, não é exatamente livro, não é filme nem CD - é tudo isso ao mesmo tempo agora.
"As velhas distinções do século 20 estão ultrapassadas. Nem mesmo a ficção científica conseguiria descrever as mudanças que a cultura de rede trouxe à sociedade pós-industrial", disse Miller em entrevista à Folha, na qual defende, entre outros, que o DJ é o artista popular do século 21 e que pode haver mais semelhanças entre Jorge Luis Borges e o hip hop do que sonha nossa vã filosofia.
 

Folha - O que você quer dizer com "ciência do ritmo"?
Paul D. Miller -
Penso no meu livro como uma espécie de mapa de territórios sobre os quais as pessoas se movem quando falam em sampling e mídias digitais. É sobre como a informação se movimenta num mundo unido por redes de informação e sistemas de intercâmbio cultural. E os ritmos são essenciais para fazer arte com esses tecidos de cultura.

Folha - Você afirma que os "cientistas do ritmo" não são só DJs e produtores musicais. Por quê?
Miller -
O modo como eu mixo tem sua origem na vida real -a música é apenas um dos dialetos da linguagem criativa. Todos somos movidos por ritmos, que nos cercam diariamente. No livro, penso o trabalho do DJ não apenas como música mas como mídia. A música age como um condutor para que os tecidos de cultura se movimentem tornando-os acessíveis às pessoas. Qualquer um pode "falar" música.

Folha - Parte de suas teorias faz referência às idéias dos situacionistas. Como o situacionismo pode ser "remixado" com a cultura digital?
Miller -
Tem a ver com o que esses caras pensavam em relação ao que acontece quando a geografia começa a perder definição, e as pessoas passam a se relacionar com o ambiente não como um lugar, mas como camadas de fluxos globais. A música de Nova York, por exemplo, já faz parte do repertório de gente do mundo todo. Música contém referências geográficas ou de classe? Tudo isso me vem à mente quando penso em sampling. O CD que acompanha meu livro tem uma grande mistura de ritmos com discursos que reforçam esses aspectos: Gertrude Stein é mixada com uma batida à Wu-Tang Clan; Antonin Artaud lê um manifesto sobre samples de funk; Marcel Duchamp discute sua relação com o texto por cima de um riff eletrônico minimalista. São metáforas que trazem o mesmo tipo de geografia em que os situacionistas operavam. O que faço é atualizá-la para as mídias digitais de hoje.

Folha - Na prática, como se dão essas misturas? Que relação pode existir, por exemplo, entre Jorge Luis Borges e o hip hop?
Miller -
[O conto de Borges] "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam" é um ótimo exemplo dessa mentalidade hipertextual. Vejo o sampling como um tipo de espelho voltado para outro espelho, criando uma espécie de corredor, um espaço de movimento de reflexos. O DJ herdou tudo o que os movimentos de vanguarda do século 20 lutaram para atingir. A mitologia de uma era passa a ser a tecnologia de uma outra. As conexões entre Borges e o hip hop estão basicamente nos jogos de palavras e na imaginação tecnológica. O hip hop é o Borges da cultura popular do século 21.

Folha - Você se refere a seus trabalhos como arte conceitual ou esculturas sonoras. Ao mesmo tempo parece haver uma aproximação recente entre a música eletrônica e o circuito de galerias de arte. Como isso pode redefinir os limites entre a alta cultura e a cultura pop?
Miller -
Meu maior prazer é fazer da "divisão" entre alta e baixa culturas algo completamente obsoleto. Algumas das minhas maiores influências no Brasil -Augusto Boal, Carlinhos Brown, Gilberto Gil, Arto Lindsay- mostram que a poesia pode se manifestar de formas bastante distintas. Vejo o meu trabalho como um poema construído a partir das possibilidades do som -samples, batidas, scratches e pedaços de informações que me rodeiam. É uma forma de arte criada com pedaços invisíveis de cultura. É aí que as fronteiras entre baixo e alto se dissolvem. Não é alta nem baixa, é apenas cultura. A atividade do DJ é a cultura popular do século 21.

Folha - No livro, você diz que não consegue pensar em um som que nunca tenha escutado ou que não possa fazer. Você acredita que o papel do novo artista é apenas reutilizar o que já foi feito antes?
Miller -
Sim. Não se trata de quantos discos você tem, mas como você os junta no seu som. É a saturação cultural -todos compartilhamos memórias e momentos, mas há que se entender como subjetivar a memória coletiva que as gravações representam. O que há de especial em "coisas novas"? Creio que a cultura ocidental fez do progresso uma ilusão, e a cultura DJ está desconstruindo esse papel do "novidadismo".

Folha - Por seu estilo, "Rhythm Science" parece uma espécie de crítica cultural formatada como uma canção de rap. Há versos, refrões, repetições, talvez até uns scratches aqui e ali. Você concorda?
Miller -
Fico frustrado com a cena nos EUA. Quando viajo e escuto pessoas de diferentes cenas, é isso o que eu escuto. O fato é que, para mim, a idéia de mídia nos EUA precisa ser desconstruída, e é por isso que escrevi o livro daquela maneira. Funciona como um tipo de propaganda para um novo mundo. As velhas distinções do século 20 estão ultrapassadas. Nem mesmo a ficção científica conseguiria descrever as mudanças que a cultura de rede trouxe à sociedade pós-industrial.


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