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LITERATURA
Escritor, que terá coluna semanal na Ilustrada a partir de 2 de janeiro, colocará em prática seu lado cronista
"Nada é intocável e indiscutível", diz Gullar
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Nascido em São Luís há 74 anos,
José Ribamar Ferreira poderia ter
sido mais um Ribamar maranhense. Mas sua inquietação o levou a ser "gauche" na vida, seguindo os passos da poesia de
Carlos Drummond de Andrade.
Maior poeta brasileiro vivo, um
de nossos melhores críticos de arte, dono de opiniões firmes, muitas vezes polêmicas, Ferreira Gullar (pseudônimo extraído do
Goulart materno) abre novo capítulo de sua vida em 2 de janeiro:
no primeiro domingo de 2005, ele
passará a assinar uma coluna semanal na Ilustrada.
Gullar adianta que, na coluna,
exercitará seu lado de cronista,
menos conhecido do grande público. É uma faceta bem familiar a
seus amigos e vizinhos de Copacabana, que sabem de seu prazer
em andar na rua, conversar com
pessoas, ouvir histórias.
Nesta entrevista, ele fala de sua
poesia, das artes plásticas dos outros (seus desenhos e colagens são
hobby que ele não pretende expor) e da esperança que mantém
em sua vida.
Folha - O senhor já disse que não
queria mais entrar em polêmicas,
mas, ao escrever a coluna, isso não
acabará acontecendo?
Ferreira Gullar - Vou dizer o que
penso, como sempre digo. Mas
não quero bater boca com o leitor.
Ele pode me esculhambar, escrever o que quiser. Não pretendo fazer da coluna um troço mal-humorado. Eventualmente, entrarei
em assuntos mais graves, mas
também vou escrever crônicas. A
crônica talvez seja um alívio para
o leitor, porque o noticiário já é
muito pesado.
Folha - E que temas poderiam
render crônicas?
Gullar - Comigo sempre acontecem coisas estranhas. Quando eu
participava da coluna "Rodízio"
no "Jornal do Brasil" [no final dos
anos 50, revezando-se com Manuel Bandeira e outros], registrava algumas delas, que depois foram reunidas em livro ["A Estranha Vida Banal"].
Voltei a escrever crônicas para o
"Pasquim" quando estava no exílio, em Lima e em Buenos Aires.
Assinava como Frederico Marques, brincadeira com Friedrich,
de Engels, e Marx. Num dia, passei por uma agência da Varig em
Buenos Aires e vi uma foto da enseada de Botafogo. Deu aquela
nostalgia e decidi: "Vou voltar".
Iam me prender na chegada
[em 10 de março de 1977], mas tinha muita gente me esperando no
aeroporto. No dia seguinte me
prenderam. Fui levado para o
DOI-Codi algemado, vendado,
essa palhaçada toda que aqueles
babacas faziam.
Folha - Como o senhor acompanha a polêmica em torno da abertura dos arquivos militares?
Gullar - Tem que abrir. É uma
vergonha. Em parte deles [militares], continua a visão de que fizeram certo ao dar o golpe [de
1964], que torturar estava certo.
Mas acho que não tem de buscar vendetas [vinganças]. Não resolve nada e mantém o país num
clima de divisão. Tem é que passar a limpo. Mas, se for punir, vai
ter que punir dos dois lados, porque quem pega em arma é para
matar. Sempre fui contra [a guerrilha], grande bobagem.
Folha - O senhor não simpatiza
com o politicamente correto?
Gullar - Penso pela minha cabeça. E estou sempre começando de
novo. Cada coisa que acontece,
procuro entender. Às vezes penso
contra mim, chego a uma conclusão contrária à que eu costumo
pensar. Fazer o quê? Não fico
preocupado em ser coerente.
Folha - O senhor foi vanguardista
nos anos 50 e se tornou inimigo das
vanguardas a partir dos anos 80,
em especial nas artes plásticas.
Mudou o senhor ou mudaram as
vanguardas?
Gullar - Eu mudei. Nem vanguarda nem coisa nenhuma eu
considero intocável e indiscutível.
Em 1961, o que estava fazendo
[com o grupo neoconcreto] tinha
chegado a um impasse. Comecei a
ver que não era o caminho correto
para mim.
Já Lygia [Clark] e Hélio [Oiticica] foram além do limite. É claro
que cada um faz o caminho que
quer, mas não sou obrigado a
concordar. O que os dois fizeram
estava já fora do que se podia chamar de linguagem artística. Eles
chegaram a um ponto em que
queriam provocar meras sensações. Do meu ponto de vista, isso
é estar antes das linguagens.
Dizia na época: "Não pensem
que eu vou cortar minha orelha.
Não sou suicida. Não estou no
mundo para me destruir nem
destruir os outros". Veja que
Lygia acabou parando, e Hélio, no
final, começou a fazer experiências com cinema. Porque as linguagens das artes plásticas já estavam desintegradas.
Liberdade total não é nada. A
água que não tem limite é rasa. Se
boto cocô numa lata, não estou
inventando nada. É uma coisa pífia, fedorenta. Essa é uma visão
segundo a qual Deus fez a arte e
"eu estou aqui botando para quebrar nessa bobagem que Deus inventou". Mas não é nada disso. A
arte foi inventada por nós.
Folha - Por causa dessas opiniões
sobre arte, o senhor acha que passou a ser visto como reacionário?
Gullar - A mim ninguém nunca
disse isso. Só se dizem por trás.
Mas nenhum poeta foi mais longe
do que eu nas experiências. E não
há mérito nenhum nisso. O que
não tenho é apego a mim mesmo.
Nem tenho medo de mudar.
Folha - E por que a ruptura na
época foi tão radical: trocar a poesia visual, de vanguarda, pela poesia social, escrevendo até cordéis
políticos?
Gullar - São coisas explicáveis
pela conjuntura da época. Preferi
participar daquele momento social a fazer uma poesia que ninguém entendia e que eu não queria mais fazer.
O CPC [Centro Popular de Cultura, do qual foi presidente] fez
um monte de coisas partindo de
um equívoco: fazer uma arte simples para atingir o povo. Nem
atingiu o povo nem fez boa arte.
Nós mesmos chegamos a essa
conclusão pouco antes do golpe.
E, nos espetáculos que fizemos
depois, procuramos dar mais
qualidade. Fizemos autocrítica na
prática.
Folha - São Luís, para o senhor, é
como Itabira para Carlos Drummond de Andrade: um retrato na
parede que dói?
Gullar - São Luís é um amor não
resolvido. Voltei lá algumas vezes,
mas tem sempre um quintal ou
um pedaço de telhado que me joga numa viagem emocional em
direção ao menino que não existe
mais. É doloroso, não dá para viver lá. Mas tenho certeza de que
seria outra pessoa se não tivesse
nascido em São Luís. O esplendor
das manhãs, o cheiro do tijuco
podre, a lama, está tudo impregnado na minha poesia.
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