São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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LITERATURA

Escritor, que terá coluna semanal na Ilustrada a partir de 2 de janeiro, colocará em prática seu lado cronista

"Nada é intocável e indiscutível", diz Gullar

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Nascido em São Luís há 74 anos, José Ribamar Ferreira poderia ter sido mais um Ribamar maranhense. Mas sua inquietação o levou a ser "gauche" na vida, seguindo os passos da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
Maior poeta brasileiro vivo, um de nossos melhores críticos de arte, dono de opiniões firmes, muitas vezes polêmicas, Ferreira Gullar (pseudônimo extraído do Goulart materno) abre novo capítulo de sua vida em 2 de janeiro: no primeiro domingo de 2005, ele passará a assinar uma coluna semanal na Ilustrada.
Gullar adianta que, na coluna, exercitará seu lado de cronista, menos conhecido do grande público. É uma faceta bem familiar a seus amigos e vizinhos de Copacabana, que sabem de seu prazer em andar na rua, conversar com pessoas, ouvir histórias.
Nesta entrevista, ele fala de sua poesia, das artes plásticas dos outros (seus desenhos e colagens são hobby que ele não pretende expor) e da esperança que mantém em sua vida.
 

Folha - O senhor já disse que não queria mais entrar em polêmicas, mas, ao escrever a coluna, isso não acabará acontecendo?
Ferreira Gullar -
Vou dizer o que penso, como sempre digo. Mas não quero bater boca com o leitor. Ele pode me esculhambar, escrever o que quiser. Não pretendo fazer da coluna um troço mal-humorado. Eventualmente, entrarei em assuntos mais graves, mas também vou escrever crônicas. A crônica talvez seja um alívio para o leitor, porque o noticiário já é muito pesado.

Folha - E que temas poderiam render crônicas?
Gullar -
Comigo sempre acontecem coisas estranhas. Quando eu participava da coluna "Rodízio" no "Jornal do Brasil" [no final dos anos 50, revezando-se com Manuel Bandeira e outros], registrava algumas delas, que depois foram reunidas em livro ["A Estranha Vida Banal"].
Voltei a escrever crônicas para o "Pasquim" quando estava no exílio, em Lima e em Buenos Aires. Assinava como Frederico Marques, brincadeira com Friedrich, de Engels, e Marx. Num dia, passei por uma agência da Varig em Buenos Aires e vi uma foto da enseada de Botafogo. Deu aquela nostalgia e decidi: "Vou voltar".
Iam me prender na chegada [em 10 de março de 1977], mas tinha muita gente me esperando no aeroporto. No dia seguinte me prenderam. Fui levado para o DOI-Codi algemado, vendado, essa palhaçada toda que aqueles babacas faziam.

Folha - Como o senhor acompanha a polêmica em torno da abertura dos arquivos militares?
Gullar -
Tem que abrir. É uma vergonha. Em parte deles [militares], continua a visão de que fizeram certo ao dar o golpe [de 1964], que torturar estava certo.
Mas acho que não tem de buscar vendetas [vinganças]. Não resolve nada e mantém o país num clima de divisão. Tem é que passar a limpo. Mas, se for punir, vai ter que punir dos dois lados, porque quem pega em arma é para matar. Sempre fui contra [a guerrilha], grande bobagem.

Folha - O senhor não simpatiza com o politicamente correto?
Gullar -
Penso pela minha cabeça. E estou sempre começando de novo. Cada coisa que acontece, procuro entender. Às vezes penso contra mim, chego a uma conclusão contrária à que eu costumo pensar. Fazer o quê? Não fico preocupado em ser coerente.

Folha - O senhor foi vanguardista nos anos 50 e se tornou inimigo das vanguardas a partir dos anos 80, em especial nas artes plásticas. Mudou o senhor ou mudaram as vanguardas?
Gullar -
Eu mudei. Nem vanguarda nem coisa nenhuma eu considero intocável e indiscutível. Em 1961, o que estava fazendo [com o grupo neoconcreto] tinha chegado a um impasse. Comecei a ver que não era o caminho correto para mim.
Já Lygia [Clark] e Hélio [Oiticica] foram além do limite. É claro que cada um faz o caminho que quer, mas não sou obrigado a concordar. O que os dois fizeram estava já fora do que se podia chamar de linguagem artística. Eles chegaram a um ponto em que queriam provocar meras sensações. Do meu ponto de vista, isso é estar antes das linguagens.
Dizia na época: "Não pensem que eu vou cortar minha orelha. Não sou suicida. Não estou no mundo para me destruir nem destruir os outros". Veja que Lygia acabou parando, e Hélio, no final, começou a fazer experiências com cinema. Porque as linguagens das artes plásticas já estavam desintegradas.
Liberdade total não é nada. A água que não tem limite é rasa. Se boto cocô numa lata, não estou inventando nada. É uma coisa pífia, fedorenta. Essa é uma visão segundo a qual Deus fez a arte e "eu estou aqui botando para quebrar nessa bobagem que Deus inventou". Mas não é nada disso. A arte foi inventada por nós.

Folha - Por causa dessas opiniões sobre arte, o senhor acha que passou a ser visto como reacionário?
Gullar -
A mim ninguém nunca disse isso. Só se dizem por trás. Mas nenhum poeta foi mais longe do que eu nas experiências. E não há mérito nenhum nisso. O que não tenho é apego a mim mesmo. Nem tenho medo de mudar.

Folha - E por que a ruptura na época foi tão radical: trocar a poesia visual, de vanguarda, pela poesia social, escrevendo até cordéis políticos?
Gullar -
São coisas explicáveis pela conjuntura da época. Preferi participar daquele momento social a fazer uma poesia que ninguém entendia e que eu não queria mais fazer.
O CPC [Centro Popular de Cultura, do qual foi presidente] fez um monte de coisas partindo de um equívoco: fazer uma arte simples para atingir o povo. Nem atingiu o povo nem fez boa arte. Nós mesmos chegamos a essa conclusão pouco antes do golpe. E, nos espetáculos que fizemos depois, procuramos dar mais qualidade. Fizemos autocrítica na prática.

Folha - São Luís, para o senhor, é como Itabira para Carlos Drummond de Andrade: um retrato na parede que dói?
Gullar -
São Luís é um amor não resolvido. Voltei lá algumas vezes, mas tem sempre um quintal ou um pedaço de telhado que me joga numa viagem emocional em direção ao menino que não existe mais. É doloroso, não dá para viver lá. Mas tenho certeza de que seria outra pessoa se não tivesse nascido em São Luís. O esplendor das manhãs, o cheiro do tijuco podre, a lama, está tudo impregnado na minha poesia.


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