Publicidade
Publicidade
E o escritor tímido, como fica?
PublishNews, Henrique Rodrigues, 19/05/2022
Em sua coluna, Henrique Rodrigues questiona a lógica de mercado que vem balizando a vida literária contemporânea

Na semana passada participei de uma sequência de encontros literários em diferentes formatos. Aceitamos os convites distraidamente e, quando nos damos conta, estamos acendendo um cigarro no outro, como se dizia antigamente. Sempre detestei cigarros, aliás.

Por conta dos eventos encadeados, acabei fazendo um tipo de mashup (em bom português: mistureba) mental de assuntos relacionados ao universo de livros, vida literária, censura, pautas identitárias, educação e congêneres. Naturalmente, essas temáticas estão relacionadas entre si, mas sabemos que os melhores debates são aqueles que deixam pontas soltas, gostinho de quero mais, pulgas atrás das orelhas e outras expressões populares que apontam o desejo de continuidade.

Algumas questões continuam me perseguindo até agora, enquanto batuco o teclado. Uma delas foi a necessidade de valorização dos professores, categoria tão exaurida moral e financeiramente, e ao mesmo tempo sobre a qual vem recaindo uma demanda administrativa tamanha que dificulta fazer algo fundamental como ler um livro e pensar sobre ele. Se entendemos que a mediação cultural no processo de formação de novos leitores é uma das etapas mais relevantes no tecido cultural, e que os educadores são os grandes agentes nesse processo, não dá para tratar esses profissionais como burocratas ou, para usar o eufemismo corrente, designer de conteúdo educacional.

Outro ponto que ainda me enrosca a cuca e aperta o coração foi ver jovens falando poesia no evento literário realizado na quadra da escola de samba. Ali em Madureira, subúrbio carioca tão rico culturalmente – porém sem uma biblioteca pública –, a garotada cantava e declamava tudo o que precisa ser dito. No fim do poema, repetiam em uníssono o verso que ecoa aqui ainda: “Precisamos morrer todo dia?”. A pergunta foi para todos nós, não se engane.

Em outro evento no qual havia público escolar, o palco para selfies e um tipo de karaokê estava lotado, com jovens amontoados fazendo dancinhas com celulares em punho numa agitação efervescente. Já nos espaços com debates e apresentações de contadores de histórias estavam às moscas ou com meia dúzia de gatos pingados, à exceção daqueles com celebridades televisivas e/ou do próprio universo das redes sociais. O problema não é o primeiro cenário em si, porque a garotada curte a zoeira mesmo, ainda mais quando alunos saem para uma visita, e sim o segundo quadro. Eis que, durante o nosso debate (vazio, como soy), surgiu a questão sobre como os escritores usam as redes sociais e a internet como um todo. Um dos meus colegas de papo reconheceu a quase compulsão de passar o dia conectado, inclusive durante as refeições, ao passo que o outro acreditou ser um caminho sem volta que a turma da literatura use esses recursos profissionalmente. Foi dito que, para um autor se apresentar a uma editora, é preciso evidenciar o uso constante das redes sociais.

O papo me fez pensar algumas coisas na hora e depois. Com toda a dinâmica atual, em que o silêncio da leitura e da escrita foi substituído pela exibição quase fetichista dos escritores e artistas em geral, como ficam aqueles que, a despeito da qualidade do trabalho, não se enquadram nesses esquemas? Nessas condições, um grande escritor tímido e recluso jamais chegaria a ter o seu texto publicado? Dalton Trevisan, Raduan Nassar, J. D. Salinger morreriam na praia? Antes que citem o caso de Elena Ferrante, vale lembrar que a enigmática autora italiana (e nem sabemos se ela é uma autora mesmo ou várias pessoas) tem no segredo da sua identidade um grande recurso de marketing.

Quando a produção literária se torna refém do meio em detrimento da liberdade criativa, me parece que algo está distorcido. Não é raro percebermos autores cujo texto, quando lido, se mostra muito aquém da performance sensualizada, do ativismo político, da saraivada de elogios automáticos, das opiniões instantâneas e outros tantos vícios que as redes sociais trouxeram para o comportamento geral.

Sempre tive a sensação de que a experiência literária nos desloca para um tempo diferente, ou mesmo para a percepção diferente da existência. Do escapismo de um best-seller à leitura vagarosa de um clássico, a ideia é que a literatura nos transporta para outro lugar onde não somos atropelados pela necessidade vertiginosa, superficial e etérea da vida ordinária. Daí ela, a literatura, ser extraordinária.

Se vivemos no tempo em que uma expressão artística está tributária à mesma lógica que cria subfamosos oriundos de reality shows, sistema tão questionado pela fugacidade e pelo esvaziamento, não caberia à própria arte também questionar essa mecânica com seus recursos técnicos e específicos perante as subjetividades?

Faço essas perguntas também para mim, usuário que sou de algumas redes sociais. É preciso reconhecer todas as facilidades que esses recursos nos trouxeram, especialmente a possibilidade de interação com leitores. No entanto, comparando com a situação de 15 anos atrás, quando o grande atrativo dos nossos blogs eram os textos que tentávamos compartilhar, parece que tudo foi fagocitado e transformado em mercadoria moldada ao formato determinado pelo aplicativo do momento.

Não sei, algo me parece estranho. Em meio a esse mundo de aparências e dancinhas, talvez precisemos voltar à procura de leitores, em vez de seguidores e clicadas.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
Em sua coluna, Henrique Rodrigues apresenta sugestões de ações práticas contra o cerceamento à literatura
Em sua coluna, Henrique Rodrigues comenta a recorrente perseguição à literatura contemporânea
Em nova coluna, Henrique Rodrigues comenta as temáticas literárias das escolas de samba do Carnaval carioca
Em sua coluna, Henrique Rodrigues reflete sobre o papel das premiações na trajetória de autores
Em sua coluna, Henrique Rodrigues faz duas críticas sobre pontos recorrentes à Bienal do Livro e defende a implementação de atividades de leitura no cotidiano
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Seção publieditorial do PublishNews traz obras lançadas pela Ases da Literatura e seus selos
Em 'A cartinha de Deus', a autora leva os leitores em uma jornada íntima e inspiradora, mostrando como aprendeu a lidar com os desafios impostos pela distonia
Em 'Alena Existe', publicada pela Ases da Literatura, o autor Roger Dörl desvenda os segredos do universo numa trama repleta de ficção científica, aventura e mistério
Conheça a jornada de Nick, o gatinho amoroso que ensina sobre presença e ausência no livro da autora Maurilene Bacelar, lançamento da Editora Asinha
No episódio, nossa equipe conversou com pesquisador do mercado editorial sobre o segmento da autopublicação, seu histórico, crescimento, nuances e importância; além de saber mais sobre a própria carreira de Müller
Ao escritor cabe colocar as questões, cabe promover o debate, cabe incomodar e perturbar, mas não tem de ter a pretensão de dar as respostas.
José Eduardo Agualusa
Escritor angolano
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar