Só que eu não era uma repórter, nem velha conhecida. Havia ido à sua casa pois ele era o homenageado de um evento que eu promoveria à noite na Universidade Federal de Campo Grande ao qual prometera comparecer, não sem antes me advertir de que não faria nenhum discurso, apenas autografaria seus livros. No fundo, ali, diante de sua porta, eu nutria secretamente alguma esperança de reverter o quadro e convencê-lo a dizer alguma coisa aos estudantes quando chegasse a hora.
Eu, que ficara surpresa com a declaração/pedido, tremi nas bases. Não havia estudado sua obra suficientemente como para apresentá-lo e aquela responsabilidade me parecia imensa. O que poderia dizer que já não houvesse sido dito por críticos como Antônio Houaiss, Ênio da Silveira e tantos. Dizer que sua poesia era/é subversiva em todas as suas camadas ou por onde quiséssemos lê-la? E que de nada adiantava compará-lo a Guimarães Rosa pois a viagem na palavra de um e de outro chegava a estações completamente diferentes? Por maior voltagem poética que tivesse, Guimarães era um prosador, contava uma história. Manoel de Barros desautorizava as histórias nos seus poemas. Para ele, falar com concretude de alguma coisa era “dar ossos à água” como uma vez relatou num poema que imitava uma entrevista.
O texto saiu, mas a revista com a seleção acabou não sendo publicada, porém as idas e vindas haviam inaugurado uma correspondência muito íntima entre nós, junto com a promessa de nos avistarmos numa de suas possíveis vindas ao Rio, visitar sua filha. Eu morava em Vila Isabel e combinávamos sempre de tomar chope no Petisco da Vila, boteco tradicional do bairro onde Manoel costumava ir. O chope, claro está, nunca aconteceu.
E agora eu estava ali, diante dele pela primeira vez, ao vivo e a cores. Ele era mais ou menos como nas fotos, só que mais baixinho, miúdo sem ser magro, calvo, mas com cabeleira lisa e alvíssima. Tinha uns olhos diminutos que ficavam ainda menores quando sorria por baixo dos óculos de aro quadrado. E sorria muito quando me abraçou calorosamente, dizendo com sua voz anasalada: "até que enfim nos encontramos, Suzana!" Stella, sua esposa apareceu e saiu após eu ser devidamente apresentada.
Sentamos à volta de uma mesa grande. Eu estava estupefata, não esperava a recepção tão calorosa, nem o homem tão falante e sorridente que surgia diante de mim. Mas a alegria tinha suas razões de ser pois a promessa do chope se cumpriria em um vinho que ele pediu à Stella que abrisse, enquanto me perguntava pelo Rio, por minha vida, meu trabalho, com uma curiosidade quase infantil. Entre as tantas perguntas que me fez, uma delas foi sobre se eu continuava a escrever e se continuava (ele sabia um pouco sobre minha vida) a trabalhar muito. Àquela altura eu é que estava me sentindo entrevistada e achei tudo completamente estranho. Respondi muito timidamente que era uma poeta bissexta e quase não tinha tempo de escrever. Ao que Manoel respondeu: "isso é o que você pensa. Quase ninguém tem tempo, Suzana. Tempo a gente constrói se é que escrever é uma coisa importante. Poesia pede tempo livre, pede silêncio, a gente precisa estar esquecido das coisas. Parar de trabalhar ou trabalhar apenas em função da poesia. Por que você não pára?" Comecei a ouvir cada vez mais interessada. Engraçado como a conversa ia fluindo sem que eu precisasse perguntar nada, tão acostumada estava a ser eu a perguntar. Nesse meio tempo apareceu um menino moreno de seus 08 anos na sala. Era seu neto, Silvestre, que falou alguma coisa no ouvido do avô e saiu correndo.
Fiquei extática. Ele estava tentando me explicar (sem que eu perguntasse) os seus mistérios, o que vivenciava, de que modo encontrava seus inutensílios, como talvez dissesse. Talvez estivesse tentando me avisar de que sem predisposição não haveria como encontrar a criação.
Quem sabe explicar que toda a sua vida fora preparada para poder dispor desse espaço interno e externo, porque continuou. "Trabalhei muito, minha filha, para dispor desse tempo. Foram anos dedicado à fazenda, à criação de gado. Muitos anos no Rio, em colégio interno, depois casado, criando filhos com sacrifício, vendendo imóveis. Sem nunca abandonar a poesia, mas também sem me dedicar como devia. Até que pude me livrar de tudo isso, passei as responsabilidades para o João (seu filho que mais tarde morreria num acidente de avião) e hoje não há quem me faça voltar a trabalhar. Quer dizer, trabalho, mas é com a imaginação".
Ele havia – como uma vez confessara a um repórter – comprado seu ócio. E por que não dizer? Seu direito à poesia.
Voltamos a nos sentar na mesa da sala à volta do vinho, falando amenidades, de certo modo festejando o fato de estarmos nos conhecendo após tantas combinações. Mas pude compreender com sua fala, muitos dos assuntos que sua poesia gritava a plenos pulmões. Sua linguagem pedia, por exemplo, mais comunhão que comparação com as coisas, vinha do encantamento e de um tempo livre para se encantar, pedia natências (potência de fazer nascimentos) palavra inventada por ele. Mas tudo vinha de um exílio em si mesmo. Necessário. Dali nasciam, de verdade, as palavras inventadas, as memórias. E de sua vivência de pantaneiro os regionalismos existenciais. Com isso logrou uma vida onde o reconhecimento chegou relativamente tarde, somente em 1989, com O guardador de águas, prefaciado por Antônio Houaiss (antes desse prêmio sua Gramática Expositiva do Chão havia conquistado o prêmio Nacional de Poesia, mas sem grandes repercussões). Tinham sido, ao todo, seis livros publicados antes de ser, de certa forma descoberto pela mídia num tempo em que a mídia ainda não era tão feroz.
Nas lombadas de suas estantes eu enxergara Confúcio, Aristóteles, Padre Antônio Vieira (que o fez apreciar as paredes do internato e lhe permitiu decorar seus sermões durante os castigos escolares) e que tais, mas ao ler seus poemas notamos a predileção, como ele mesmo afirmava, pela incompletude, pelos defeitos das frases, pelas inversões.
Saí de sua casa ainda tonta do vinho que bebera (duas taças apenas), sem comer nada, porém mais tonta ainda de tantas descobertas que não havia ido buscar e que encontrei. À noite, Manoel e Stella acompanhados de João e Silvestre compareceram ao auditório onde se falou de sua obra. Houve leitura de poemas, homenagens de praxe, a universidade em festa. A tudo assistiu calado e calado agradeceu da plateia, onde estava sentado. Alguns professores ainda quiseram insistir para que se manifestasse. Eu gentilmente os dissuadi. Manuel autografou seus livros caladinho e sorridente e assim partiu. Fui para o hotel, ainda pensando em vê-lo novamente. Mas falaria sobre o quê? Desisti de ir. Quem sabe num chope, em Vila Isabel?
Continuamos a nos corresponder por cartõezinhos (tenho vários) vou transcrever um onde ele indica alguns poemas de sua preferência e me incumbe de selecionar os outros. E um breve ensaio, talvez o único documento, em que conta e comenta como escreveu seu poema Retrato de Andarilho. Esse ensaio que se encontra no primeiro número da Revista Poesia Sempre vale por uma oficina. Aconselho.
E que dizer da minha visita? Vale por uma vida.
Na galeria, as cartas de Manoel enviadas à Suzana e ainda o artigo sobre o poema Retrato de Andarilho.
Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.
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