Victor era um homem relativamente alto, de pele alvíssima, tinha escassos cabelos que ora esticava num rabo de cavalo, ora ocultava sob um boné. Possuía uma calvície proeminente e pequena barba grisalha, usava óculos sobre uns vivíssimos olhos castanhos. Parecia muitas vezes ter saído de um de seus incríveis contos. Gostava de modo quase juvenil das surpresas e tinha generosidades inesperadas. Uma vez me perguntou com sua voz anasalada: ‘Menininha, você gosta do Borges?” À minha afirmativa enfática, me estendeu nada menos que as poesias completas em espanhol do bardo argentino que comprara numa viagem a Buenos Aires.
O diálogo entre os dois me deixou estarrecida. “Minha senhora, começou Victor, por que razão deseja fazer a oficina do conto?” Perguntou isso de modo simples e direto. Desejo escrever a história da minha família, foi a resposta tímida. “Mas, disse ele - para minha total surpresa - para escrever a história da sua família, você não precisa fazer uma oficina.” Ao ouvir esse diálogo paradoxal e memorável que praticamente desmentia todos os propósitos do espaço, fiquei quase indignada. Achei que havíamos perdido definitivamente uma aluna, já pensando em como pagaríamos o aluguel etc. Tratei de não ouvir mais a conversa que para minha surpresa, eles continuaram. Ao final, a senhora saiu matriculada e satisfeita.
Desliguei o telefone. Para que serviriam mesmo os cursos que ensinavam a escrever? Talvez tivesse obtido a resposta entre bolhas de sabão e água quente. Aquilo era bem mais do que uma aula sobre criação literária. Mudava os propósitos mesmos do trabalho a ser desenvolvido no espaço que havia criado recentemente e era necessário que mais pessoas soubessem acerca desses claríssimos mistérios.
Mas nada disso seria novidade para mim e um olhar para a obra verdadeiramente grandiosa desse amigo me fez enxergar a sua capacidade de invenção, de fabulação, de dar verossimilhança às realidades mais absurdas desse “planeta irreal”, como ele costumava dizer ao referir-se ao mundo em que vivemos. Com efeito, ele foi um escritor muito à frente de seu tempo. Esteve na vanguarda de muitos movimentos literários hoje apresentados como novidades. Do miniconto às experimentações mais irresistivelmente sensoriais. Sua genialidade estaria registrada já no livro de estreia, Necrológio, publicado em 1972 pela editora O Cruzeiro onde podemos ler O Arquivo, conto monumental que inaugura um novo modo de falar sobre a realidade brasileira universalizando-a, numa época eivada por alguns regionalismos para os quais talvez uma foto bastasse. Não por acaso esse texto foi traduzido em mais de cem países e é encontrável na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi. Nessa mesma toada seguiu-se Os banheiros publicado pela Civilização Brasileira, de onde retiro o texto A lei do silêncio que acompanha essa memória logo abaixo. Victor publicou dois romances Bolero (Rocco) alegoria à Nova República, tão premonitório das absurdidades que hoje vivenciamos e O Sétimo Punhal (José Olympio) romance policial para o qual tive a honra de escrever a orelha. Não por acaso era um dos escritores preferidos de Rubem Fonseca que conhecia seu papel fundamental na ficção dos anos 70/80 e mais.
A máxima da banheira ele levava para sua vida pessoal: intensidade, humor e a mais pura inventividade estavam presentes no seu cotidiano. Qualidades que qualquer escritor deveria trazer incrustradas dentro de si. As oficinas resultaram, sim. Tanto que o mundo povoou-se delas, tanto mais enriquecedoras quanto mais verdadeiras e distanciadas do fato particular que impede a literatura de chegar até nós. E essa é apenas uma das diversas lições que aprendi com ele. O conto A lei do silêncio que escolhi para leitura do público (disponível abaixo) mostra sua atualidade, ousadia e percepção da realidade mais fantasiosa que a própria criação e a criação tanto mais útil quanto mais inventiva for. Por isso mesmo fazer literatura definitivamente não é escrever sobre nossa família. Ave, Victor!
NB: Victor faleceu num novembro de 1997. Não pude estar presente na ocasião mas ele frequenta meu universo como se nunca tivesse saído de cena.
Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.
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