Máquinas como você - um texto sobre narração de audiobooks
PublishNews, Antonio Hermida, 05/11/2020
Em seu primeiro artigo escrito para o PublishNews, Antonio Hermida questiona a quem (ou a que fim) serve a defesa da narração 'flat' em audiolivros

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews. Este é meu primeiro texto a ser publicado aqui no PublishNews e antes de iniciá-lo de fato queria fazer duas observações. A primeira é que este texto tem como principal intenção abrir espaço para um diálogo sobre o audiobook e as múltiplas visões que dão vida a esse produto no Brasil, sejam de narradores(as), diretores(as), estúdios, editores(as), players e assim por diante.

A segunda observação é que trata-se de um texto opinativo e especulativo, não falo portanto em nome da Storytel.

Os principais tipos de narração

É notório que existem inúmeras técnicas e maneiras de se contar uma história. Todavia, quando tratamos especificamente da narração de audiobooks, podemos separá-las em dois grandes grupos: a narração interpretada e a narração flat. Entre ambas reside um mar de nuances e, mesmo que sejamos reducionistas, haverá ainda espaço para transgressão da forma. Bem, espera-se.

Antes mesmo da voz, existe uma diretriz básica sobre a narração de um audiobook, e ela se baseia na pergunta, por parte do(a) candidato(a), que antecede o casting: “Como você quer que eu leia?”

Uma parcela considerável do mercado produtor de audiobooks adota como padrão a narração flat, que consiste numa leitura monótona (em sua acepção musical) cadenciada exclusivamente pela pontuação e sem as alterações rítmicas sugeridas pelo conteúdo.

Só para deixar claro, não vejo problema na opção por uma narração flat desde que essa escolha se dê por preferências estéticas. No entanto, me causa certo desconforto a justificativa por esse estilo de narração tentar se embasar, principalmente, nos fatores a seguir:

1. a escolha é apoiada em uma teoria de que as palavras lidas dessa forma (flat) geram imagens acústicas mentais e construção de sentido similar ao da leitura, permitindo que o ouvinte experimente assim sua própria voz e ritmo sem uma poluição gerada pelas ênfases, etc.

Esse argumento, além de contraditório por si só, não conta com evidência científica que o apoie. Inclusive, nem a própria leitura, quando colocada entre papel e tela, é interpretada da mesma forma pelo cérebro, quem dirá com alguém lendo para você. E quem diz isso é Maryanne Wolf no livro O cérebro no mundo digital (Contexto). Enfim, um argumento insustentável.

2. Quando se diz que a narração flat é uma opção conceitualmente segura, uma vez que características pessoais que poderiam causar um estranhamento inicial, como sotaque, são minimizados e homogeneizados.

Gostaria de me deter um pouco neste segundo ponto por ele conter uma série de subtextos.

Pensemos por um instante a quem (ou a que fim) serve essa pasteurização.

Seguindo a lógica proposta por Sennett, no livro A corrosão do caráter (Record), em última instância, todas essas tendências atendem aos modelos econômicos e mercadológicos vigentes, além de serem moldadas por ela, a economia.

Dessa forma, e seguindo o modelo de automação presente em tudo, vejo a narração flat como uma tendência imposta de maneira sutil -- mas nem tanto -- pelas Big Tech para colonizar também a narração através da possibilidade de leitura feita diretamente por seus assistentes de voz, eliminando assim do processo a necessidade de um ser humano, suas inconveniências como retakes, inconstâncias no rendimento, atraso, problemas de saúde e agendas conflitantes. Essa é a tese de Evgeny Morozov no livro Big Tech - A ascensão dos dados e a morte da política (Ubu). Ah, além de, é claro, remuneração.

Isso me parece bastante coerente se olharmos para trás, para os últimos cinco anos, e observarmos a evolução dos sistemas de leitura TTS (text-to-speech) e atentarmos para casos como o que grupos editoriais processaram a Amazon por infringir diretamente os direitos autorais das obras num caminho inverso, porém análogo, no qual o áudio está sendo transcrito para que ouvintes possam ler no lugar de ouvir, isso, obviamente, sem nenhum tipo comunicação aos detentores dos direitos das obras impressas.

Num futuro próximo, é bastante provável que os assistentes de voz possam atribuir intenções ao texto que vão além das impostas pela pontuação e, com certeza, isso será anunciado como algo revolucionário, uma grande coisa “que mudará a forma como você escuta audiobooks”, um verdadeiro improvement para as monótonas narrações flat, e tudo isso se dará com um alarde muito menor do que quando os toques em mp3 substituíram os polifônicos. Mas o ponto central é que esses smart assistants estarão substituindo pessoas que poderiam contar histórias de uma maneira muito mais rica, mas o padrão, veja só, era flat.

Novamente, reitero que não vejo nada de errado em optar pela opção menos arriscada, ou seja, por uma narração flat, por uma questão de gosto. Bem, e mesmo que eu me importasse, o que isso significaria para você no final do dia? Provavelmente muito pouco ou nada.

No entanto, como estou aqui e me propus refletir um pouco sobre essas questões, defendo meu ponto de vista. E, como ouvinte de audiobooks, acredito que o produto entregue torne-se mais atrativo quando pensado individualmente, como no caso dos livros. Parece óbvio, certo?

Optar por uma narração interpretada desautomatiza grande parte do trabalho tornando-o único em suas peculiaridades. Trata-se de uma opção cheia de inconvenientes, que demanda estudo prévio da obra, escolha de vozes adequadas, preparação de brief, cuidados extras na revisão, como, por exemplo, atentar para a possibilidade das vozes das personagens terem se misturado por distração, ou mesmo se as alterações vocais solicitadas pelo texto estão contempladas, como num caso de um(a) narrador(a) manter o tom grave da voz de um personagem onde texto diz “Ah, não!’, falou com a voz falha e esganiçada”. Coisas desse tipo.

© Brett Jordan / Unsplash
© Brett Jordan / Unsplash
Em suma, fazer a opção pela interpretação demanda uma série de escolhas por parte do(a) narrador(a) e do(a) diretor(a), ao menos se eu entendi bem o que Paul Valéry propõe em Lições de poética (Âyiné).

Ele diz algo mais ou menos assim: as obras do intelecto, como os objetos artísticos, são constituídas a partir da suspensão e da eliminação. A mente, ou o intelecto, por assim dizer, está lá, o tempo todo, ativo, flutuando sobre as milhões de possibilidades que compõem todo o nosso ser, memórias, imaginações, visões, sonhos, pensamentos, etc., em suma, quando não estamos focados em nada específico, estamos sobre todas as possibilidades que temos. Daí, focamos em materializar algo, inicia-se a tortura e a obra, e a cada mergulho nesse mar de possibilidades retornarmos à superfície com uma palavra, um acorde, uma pincelada, e cada escolha elimina todas as outras, e a cada mergulho, a cada tomada de fôlego, uma nova escolha que, novamente, significa eliminar todas as outras, e a partir dessas eliminações, a obra, com suas intenções artísticas, vai sendo lapidada.

Contar histórias é um fazer artístico ancestral, talvez um dos primeiros, e sem dúvidas anterior à arte em si.

A oralidade e suas tradições têm, ainda nos dias de hoje, uma importância inquestionável como berço e repositório de nossa memória coletiva, individual e familiar, carregando ao longo da história uma parte considerável desse amontoado de conceitos e ideias que representam o que chamamos ser humano e, como Nick Cave respondeu acerca do questionamento sobre IAs serem capazes compor músicas melhores que seres humanos, ainda estamos longe de ter uma IA capaz de criar e emular a bagagem de inadequações que nos constituem. Ele defende que, ao ouvirmos uma música, ouvimos as escolhas e a trajetória daquela pessoa, e diz mais:

"O que estamos ouvindo de fato é a limitação humana e sua ousadia em transcendê-la. A Inteligência Artificial, com seu potencial ilimitado, simplesmente não tem essa capacidade. E como teria? Essa é a essência da transcendência. Se somos dotados de um potencial ilimitado, o que há para transcender? E, diante disso, qual o propósito da imaginação, no final das contas."

A intenção e o esforço do artista não dizem (ou não devem dizer) nada ao público. Todo o processo mental, os pormenores e circunstâncias sobre a produção da obra, ou, voltando ao nosso caso, sobre a narração da obra são invisíveis ao receptor. Portanto, dizer que o ator Gustavo Falcão, por exemplo, tornou-se obcecado pela autobiografia de Dom Gurgel -- Agonia de um padre casado (Veneta), narrada por ele na sua versão em audiolivro -- ou não, não muda o fato de ele ter narrado sua morte como que num transe febril de um moribundo (trecho do áudio aqui). E, vejam bem, trata-se da leitura de um livro de memórias, não de um texto de ficção. Quando no início falei da possibilidade de transgressão, pensava nessa narração.

Diante disso, minha opinião sobre essa questão é bem simples e ideológica: não acho que seres humanos devam ler como máquinas, apenas para que máquinas possam fingir ler como seres humanos.


* Antonio Hermida trabalha com desenvolvimento de livros digitais desde 2009, tendo passado pela editora Zahar, Cosac Naify, SESI/SENAI-SP. Como consultor atuou diretamente no desenvolvimento de projetos, treinamentos, catálogo e departamentos digitais em diversas editoras. Atualmente é Production Planner na Storytel Brasil – plataforma sueca de streaming de audiobooks e e-books. Mais sobre o Hermida, clique aqui.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.


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