Editora e Livraria Olho d’Água fecha as suas portas
PublishNews, Redação, 25/10/2019
Jorge Claudio Ribeiro, fundador da empresa, disse que estava difícil manter os negócios. Livraria encerra as atividades em novembro.

Fundada em 1991, pelo professor Jorge Claudio Ribeiro e especializada em livros universitários de ciências humanas, a editora e livraria Olho d’Água, em Perdizes, anunciou que fechará as portas no final de novembro. “Nos últimos anos os negócios foram minguando e comecei a usar recursos próprios para manter a empresa, na esperança de uma retomada. Que não chegou e então precisei 'realizar os lucros'", explicou Ribeiro. A Olho d’Água publicou cerca de 140 obras. Entre seus autores, Paulo Freire, Lidia Aratangy, Laerte, Renato Ortiz, Pierre Bourdieu, Georg Simmel, Thomas Luckmann, Rubem Alves, Frei Betto, Derna Pescuma, Antonio Castilho, Maria Inês Batista Campos e o próprio professor Ribeiro. “Fica a certeza de nossa contribuição cultural para a sociedade e a memória de momentos felizes e inspiradores. Conheci muita gente extraordinária e contei com a colaboração de profissionais dedicados", completou Ribeiro.

Abaixo, o texto de despedida de Jorge

Um zero três meia

- Então é isso?

- Suponho.

- Vai me trancar e largar sozinha?

- Fazer o quê?

- Protesto! Não sou uma reles coisa, inerte. Sou um ser vivo. E agora você me deixa, depois de uma convivência de tantos anos... Quantos, mesmo?

- Uns vinte, acho. Bastante né?

- Para mim, nem tanto. Já vivi mais de cem anos. Segundo a escritura, nasci no início do século passado. Outro dia, escutei seu filho fazer uma profecia, de que você vai alcançar três dígitos.

- É pra levar a sério profecia de filho?

- Sei lá. Qualquer profecia vale a pena, venha de quem vier. Basta acreditar.

- Sinto arrepios ao me imaginar com um século de existência.

- Durante os próximos trinta anos, como acontece comigo agora, aqui e acolá aparecerão em você rachaduras, manchas do lado de dentro e de fora, vazamentos ocasionais. Sua fase de manutenção constante já começou, meu caro. Quanto a mim, a audição está falha e a memória cheia de buracos, mas guardei alguns papos que ouvi. Por exemplo...

- Eu lembro de várias dessas conversas! Por nós já correu muita vida, hein? Sinto que minha seiva não deve secar sem deixar rastros, assim como a água flui através de você, na estação das chuvas.

- Mas eu dizia...

- Ah, interrompi? Desculpe, estou meio sentimental.

- ... que quando você veio pra cá, a antiga ocupante manifestou o desejo de que você fosse muito feliz comigo, assim como aconteceu com ela e a família.

- Pois fui feliz mesmo, até certo ponto. Meus primeiros treze anos com você foram uma maravilha! Em ritmo intenso, minha mulher e eu adaptamos seus espaços a nossas necessidades, embelezamos você. Pintamos suas superfícies e espalhamos pequenas esculturas e gravuras (herança de meus pais), compramos pra você móveis rústicos, instalamos enorme vitrine com um único vidro grosso – através dele, à noite, a luz mortiça projetava sombras que davam aos livros um ar fantástico.

- Adoro meus azulejos. Pelo que sei, você os encomendou com uma artesã de Pinheiros.

- Azulejo na livraria em homenagem ao patrono da educação brasileira, um de meus best-sellers (ora celebrado, ora detestado neste país); azulejo na escada, dedicada à autora do primeiro livro da editora e que possibilitou minha subida, degrau por degrau; na fachada, a numeração decorada que distingue você das vizinhas; nas boas-vindas, logo na entrada; no banheiro, um espelho com a moldura decorada.

- E o dia da minha inauguração, sob sua direção?

- Teve até padre, de estola e água benta. Dediquei você a Nossa Senhora dos Prazeres (porque sim!), ao Espírito Santo (é como o vento, sopra onde quer) e a São Tomé (enfiou o dedo na ferida do ressuscitado; sua dúvida, o torna padroeiro dos intelectuais; a pedra com o nome do santo reveste você). Devidamente abençoados, continuamos as atividades, iniciadas sete anos antes, mas agora em novo patamar.

- Você ficava agitadíssimo quando os exemplares chegavam da gráfica! Lembro de sua aflição em verificar se os recém-nascidos tinham defeitos graves. Logo a seguir, exultava ao constatar que estavam quase perfeitinhos.

- É, somos humanos: por trás de tudo há sempre um “quase”. Em todo caso, com a ajuda de uma colaboradora eficiente e simpática, atuando no meio de campo, foram atraídos autores, publicados os livros deles, enchemos o estoque, as estantes e realizamos vendas, que totalizaram centenas de milhares de exemplares.

Paro pensativo, rememorando cada obra e a aventura que era produzi-la. Começava pelo cuidado com o texto alheio. A seguir entravam em cena os produtores de capas caprichadas, diagramadoras, o pessoal da gráfica.

- Alôo... aqui é do planeta Terra, câmbio.

- Quê? Ah, sim. Participamos de feiras de livros, onde distribuíamos muitos panfletos. Numa Bienal, levei autor famoso para autografar. Mas a editora era pequena e o estande idem. Então embarquei em estratégico corpo-a-corpo. Dirigia-me sobretudo às professoras, baratinadas com tanta agitação. Todas portavam crachá laranja. Disfarçadamente, eu lia a identificação da que passava mais perto e me dirigia a ela: “Professora fulana, você está a meio metro de Paulo Freire e não vai fazer nada?!”. Tomada de surpresa (“como você sabe meu nome?”), a escolhida e as colegas perguntavam onde estava seu herói, cumprimentavam-no, sorriam-se, batiam um papinho, tiravam um retrato, compravam o livro, ganhavam autógrafo. Às vezes se formava uma fila.

- Essa parte eu não presenciei. Sempre fiquei na retaguarda, segurando a onda. Mas houve momentos em que brilhei intensamente.

- É mesmo. Montávamos antologias, cada uma reunia uns trinta autores. As dos jovens eram intituladas de VITrAL; as dos adultos, Caleidoscópio. Produzimos duas edições de cada série. Eram obras cooperativadas, dava um trabalho danado organizar. Mas os lançamentos faziam todo o esforço valer a pena. Todo mundo trazia um lanchinho que era partilhado, o ponche era por nossa conta.

- Até hoje a alegria das autoras e autores impregna meu corpo. Você fazia a chamada de cada pessoa e lhe entregava os exemplares correspondentes. A seguir, improvisava-se um sarau em que eram apresentados poemas, crônicas e a pensata, presentes naquelas obras. Compareciam a família, namorados e namoradas e pretendentes. Uma avalanche de hormônios, de feromônios!

- Festival de risadas, concentração inaudita de felicidade. O pessoal não cabia aqui dentro, transbordava para a calçada e parte da rua. Acho que o paraíso deve ser parecido com isso. Ou melhor, essas tardes/noites de autógrafos eram o céu possível neste planeta.

Silenciamos. Toda essa vida e suas recordações estão prestes a se metamorfosear. Retomo.

- Por uma série de razões, micro e macro, aos poucos esse ímpeto arrefeceu, a grana encolheu, precisei meter a mão no bolso.

- Verdade. Eu percebia que você entrava meio borocochô, parecia que nossa convivência não lhe trazia mais a alegria do início.

- Velha sábia, você. Foi isso mesmo. Mas a culpa não foi sua. Culpa de ninguém. Permanecem os livros que produzimos juntos e que encantaram e iluminaram tanta gente: esses, ninguém nos tira.

Tá na hora.

- Tchau querida, obrigado.

- Adeus meu amigo. Que a profecia filial se cumpra e que você chegue aos cem anos, recebendo e distribuindo felicidade.

Abraçamo-nos, eu e a casa de minha editora e livraria, a Olho d’Água. Em breve ela será demolida (me arrepio ao pensar nisso) e acolherá outras vidas. Morte e renascimento. Fecho a porta de madeira antiga e giro a chave, que entrego ao novo dono. Da vitrine, uma visão me acena, uma pomba pousa no vestíbulo, brilha a fachada revestida com pedra de São Tomé... das Letras – a única em Perdizes. Adeus, Homem de Melo, número mil e trinta e seis. Mais do que um endereço, você foi um ancoradouro de desejos, sonhos e realizações. Subo a rua, novas trilhas por buscar.

[25/10/2019 04:00:00]