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Os inacreditáveis números do livro jurídico – parte 1
PublishNews, Henderson Furst, 02/08/2019
Na primeira parte de sua coluna, Henderson mostra os números dos livros jurídicos e explica o que aconteceu com o mercado de CTP

A última pesquisa Fipe sobre o mercado editorial trouxe novos números angustiantes para o mercado científico-técnico-profissional (CTP, para os mais íntimos). Os dados demonstram que a redução acumulada entre 2015 a 2018 foi de 44,9%, um número assustador e igualmente triste.

Este artigo é para falarmos dos inacreditáveis números do livro jurídico. E falo deles para procurar alguma explicação plausível e, com isso, esboçar o futuro do livro jurídico.

Entre 2014 e 2018, a queda de exemplares vendidos foi de 65,8%! Isso mesmo, em apenas quatro anos, o mercado editorial jurídico reduziu 2/3: de 14.285.422 exemplares, em 2014, para 4.887.361 exemplares, em 2018! Tais números são impressionantes, mas se considerarmos outros números do mundo jurídico, eles se tornam inacreditáveis. Vamos a eles.

Em relação aos leitores universitários, em 2014, tínhamos 1.284 faculdades de Direito e, no final de 2018, 1.517 faculdades. Ou seja, um crescimento de 18,14%. Se considerarmos apenas seis meses a mais, julho de 2019, em que chegamos à marca de 1.670 faculdades de Direito, o crescimento nesse período será de 30%!

Em relação aos leitores de obras “profissionais”, restringindo-nos apenas à advocacia, no final de 2014, o Brasil tinha cerca de 835 mil advogados ativos, enquanto em 2018 o número era de cerca de 1,1 milhão de advogados ativos – hoje temos exatamente 1.151.599 advogados ativos [1].

Permitam-me reunir os números relevantes numa única frase: enquanto o mercado editorial jurídico reduziu 65,8% da quantidade de exemplares vendidos entre 2014 e 2018, o número de faculdades de Direito aumentou 18,14% e a quantidade de advogados ativos inscritos na OAB aumentou 31,73%! Esses são os números inacreditáveis do mercado editorial jurídico!

Acredito que os leitores já saibam que o livro jurídico possui um ciclo de vida curto, pois a obsolescência é alta devido às constantes mudanças legislativas e jurisprudenciais do país. Pois bem, nesse período de 2014 a 2018, tivemos grandes mudanças! Vejam algumas: um novo Código de Processo Civil (que tornou desatualizada ao menos 70% de uma biblioteca jurídica), reforma trabalhista, mudanças na aplicação do processo penal devido às inovações da Operação Lava Jato, multipropriedade e direito de laje, entre outras.

Como um segmento cujo público relevante aumentou expressivamente – e sequer estou considerando a crescente quantidade de concurseiros em tempos de crise e de funcionários públicos – pode ter um decréscimo tão grande?

Fiz essa pergunta cá e acolá e ouvi de tudo um pouco. Pirataria, crise econômica, diminuição do número de matriculados nas faculdades de Direito etc. Como todo problema complexo possui igualmente uma resposta simples, facilmente convincente e absurdamente equivocada, não creio que um único fator seja responsável por esse estrago sozinho. É uma combinação trágica, com alguns outros elementos que precisamos debater.

A hipótese que acrescento a tudo isso é que a queda brusca de exemplares vendidos se deve à uma crise de demanda: nós, editores e autores, não estamos publicando mais o que interessa aos leitores e aos não leitores. Sim, dói escrever isso, mas me parece que aí é onde mora a verdade. E isso ocorreu rapidamente porque foi a mudança de hábitos de consumo de conteúdo científico e profissional dos leitores.

Entre os leitores universitários, por exemplo, a geração que se encontra na graduação de Direito no período dessa queda é aquela que nasceu e cresceu com Internet, Google e YouTube. Quando tinham dúvidas sobre a fórmula de Bhaskara, não pegavam um livro, mas “googlavam” ou assistiam a um vídeo no YouTube com qualquer professor, de qualquer formação, desde que fosse didático. E isso se repete até hoje: quando não entendem algo que foi transmitido em aula, o mesmo conteúdo será encontrado resumido em algum canto da Internet.

Eis a fórmula do sucesso para os jovens alunos jurídicos: o conteúdo resumido e rápido a poucos cliques de distância com aquilo que cai na prova. É expressivo o aumento de canais e perfis em todas as redes sociais de diversos produtores de conteúdos prometendo ensinar de forma simples, rápida e definitiva algum conteúdo. A remuneração de tais conteudistas se dá ou pela própria estrutura da rede social – com publicidade –, ou pela venda ao acesso de conteúdos por preços módicos. Tais conteúdos vão desde esquemas coloridos a apostilas impressas ou em PDF, esquemas de aula, cronograma de estudos a algumas horas de videoaula. Em diversos casos, o produtor de conteúdo sequer concluiu a graduação.

Com isso, os alunos deixaram de estudar pelos livros jurídicos e passaram a estudar por outros conteúdos que consideram mais simples e menos trabalhosos. Os jovens cérebros leitores foram estimulados a outros aspectos cognitivos, e não ao grande salto evolutivo que representa a leitura no desenvolvimento intelectual da humanidade[2]. Diversos professores de instituições dos mais variados perfis (incluindo aquelas que se encontram entre as 10 melhores do país) relatam uma mudança gradual em que seus alunos deixaram de ler livros e passaram a ler artigos, depois textos de opinião e depois só assistiam vídeos e, mais recentemente, inclusive, deixam de assistir quando o vídeo tem mais de cinco minutos. Para a prova, estudam pelo caderno, exclusivamente, produzido por algum membro da sala ou de turmas anteriores e basta! Sim, há casos de diversas gerações de uma faculdade terem se formado com os cadernos de um único veterano – que é reiteradamente homenageado na formatura.

Eu quis entender esse fenômeno. Em julho, encerrou-se uma experiência antropológica que me propus fazer por um ano: lecionar numa sala de aula da graduação de uma instituição de ensino com avaliação mediana do MEC, mas com público discente variado. A ideia era entender por mim mesmo o que se passava em sala de aula. Algumas observações: de tanto não ler, os alunos passaram a escrever apenas com palavras-chave (foi difícil corrigir as provas!); o material de estudo são os PPT de aula com algumas anotações marginais; a preocupação é a nota, não a aprendizagem; a turma que mais teve leitores foi uma turma noturna de 60 alunos, em que apenas dois fizeram leituras ocasionais da bibliografia que adotei; ninguém consumia pirataria de livros, não porque os compravam, mas porque simplesmente não liam; indicações de documentários ou séries tiveram maior repercussão para debates em sala de aula do que textos, ainda que curtos.

Essa experiência não destoa muito daquela que tenho em salas de pós-graduação. Tenho a felicidade de ser professor em programas de pós-graduação em Direito em todas as regiões do país – exceto o Norte, mas que espero suprir em breve. Frequentemente, observo que os alunos, futuros especialistas de uma determinada área jurídica, não listam mais de cinco autores na bibliografia utilizada em suas pesquisas. Aliás, não é incomum desconhecerem bases de dados e outros recursos para pesquisas bibliográficas, razão pela qual invariavelmente escuto de orientandos que eles estão pesquisando temas difíceis, pois não encontram bibliografia. Esse fenômeno começa a chegar a programas de pós-graduação stricto sensu, pois alguns professores e orientadores de mestrado relatam que seus jovens pesquisadores não fazem leituras profundas, densas, em obras clássicas, mas se restringem àquilo que o Google arbitra de relevante a eles.

Importa agregar a essa realidade também os dados do INAF Brasil 2018[3], que revelam que apenas 34% das pessoas que atingem o nível superior no Brasil podem ser consideradas proficientes em seu nível de alfabetização. Sim: 66% dos universitários brasileiros estão entre analfabetos funcionais, intermediária ou elementarmente alfabetizados – curiosamente, um triste índice que coincide com os números da diminuição do mercado editorial jurídico.

Quanto aos profissionais, e aqui faço um recorte à advocacia por ser o público que pesquisei, o fenômeno da mudança de demanda não é muito diferente dessa que observamos nos universitários, vez que é consequência direta. Observa-se crescente oferta (e demanda) de conteúdos práticos e prontos: modelos de peça, curso de como fazer uma petição inicial ou um recurso de apelação, como cobrar honorários, como fazer uma audiência, como captar clientes pela internet etc. Sim, vende-se pacotes com mais de 4 mil modelos de peças para se usar livremente, e isso é consumido pouco importando quem fez a referida peça ou se ela está atualizada com a complexidade normativa e jurisprudencial brasileira. E até mesmo ouvi um coachdizer para advogados, numa palestra de auditório mais lotado que de congressos jurídicos, que eles (os advogados) deveriam parar de estudar para ganhar dinheiro. Isso mesmo: parem de estudar e vão ganhar dinheiro. Veja-se que se propaga uma inversão de paradigmas: inteligente é aquele que é esperto, aquele que não estuda e vai bem na prova; aquele que não investe em sua formação e ganha dinheiro...

Quero, com isso, demonstrar que houve uma mudança na demanda de conteúdo jurídico. E é aí que foram parar os 2/3 do mercado editorial jurídico. Surge, assim, uma espécie de “alta literatura jurídica” e “baixa literatura jurídica” – entendendo-se por “literatura jurídica” toda forma de conteúdo consumido por um leitor interessado em aprender algo relacionado ao mundo jurídico. A “alta literatura” representa o mercado editorial dos leitores, que oscilará cada vez mais até encontrar a medida de uma demanda inelástica, produzida por autores que investiram cerca de 15 anos em formação acadêmica para produzir a obra. A “baixa literatura” representa o mercado editorial ainda desconhecido do atual modelo, cujo público é de não leitores e o conteúdo ofertado é distinto do texto, podendo oscilar de diagramas e esquemas a vídeos, cardsde memorização etc. No momento, os atuais produtores de conteúdo investiram, em sua maioria, poucos anos de formação acadêmica, e é possível encontrar até mesmo conteudistas que sequer concluíram a graduação em Direito, mas já são best-sellers, num modelo de remuneração completamente distinto do mercado de alta literatura. É possível que combinações entre os dois mercados impliquem literatura de acesso para os públicos não leitores, criando-se livros mais ricos de conteúdos multiplataformas, e isso pode vir a se tornar uma solução para os novos tempos.

Como me estendi demais neste texto, guardo para um próximo as minhas análises de risco da redução da bibliodiversidade jurídica, bem como os problemas que uma massa de “operadores do direito” com pouca ou nenhuma leitura podem causar ao país.

Finalizo com minha preocupação de que, se no público jurídico encontro os fenômenos de não leitura acima descritos, é porque há muito estamos deixando de estimular os cérebros dos jovens à leitura, implicando uma alteração da plasticidade cerebral,[4]que levará a consequências ainda desconhecidas, mas certamente arriscadas e que impedirão as novas gerações a terem acesso ao direito à literatura. Sim, quero concluir ressaltando a importância da literatura – e, com isso, também a literatura jurídica. Antônio Cândido ensinou-nos[5]que a literatura corresponde a uma necessidade universal que precisa ser atendida para que não se mutile a personalidade e seu desenvolvimento, pois é ela que nos liberta do caos e nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a humanidade, diz ele! Além disso, a literatura é um instrumento consciente de desmascaramento, que possibilita compreender as restrições dos direitos ou a negação deles, tal como a miséria, a servidão, o preconceito, a fome e o analfabetismo.

Talvez a falta da literatura, especialmente a jurídica, seja uma das causas do estado de coisas e de declarações contendo absurdos desumanos que temos ouvidos em nossos tempos estranhos.

[1]Dados do Conselho Federal da OAB, consultado em 1º/08/2019.

[2]Cf. WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.

[3]Cf.: <https://drive.google.com/file/...>. Acesso em: 1º/08/2019.

[4]Cf. BARZILLAI, M; WOLF, M. The importance of Deep Reading. Educational Leadership. V. 66, n. 6. Alexandria/VA: Association for Supervision and Curriculum Development, 2009, p. 32-37; WOLF, M. Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain. Nova Iorque: Harper Perennial, 2008.

[5]CÂNDIDO, Antonio. O Direito à Literatura. In: ________. Vários escritos. 4.ed. São Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 169-191.

Nas horas ocupadas, Henderson Furst é editor jurídico do Grupo Editorial Nacional; nas horas livres, flautista, escritor e mestre cervejeiro. Bacharel em Direito pela UNESP, mestre e doutor em Bioética pelo CUSC, com pesquisas no Kennedy Institute of Ethics, Georgetown University, e doutor em Direito pela PUC-SP, Henderson também é professor de diversos programas de pós-graduação em Direito, tal como PUC-Campinas e Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado, foi editor jurídico da Thomson Reuters/Revista dos Tribunais e da Editora Saraiva. Atua nas linhas editoriais de obras universitárias, profissionais e acadêmicas, bem como projetos especiais, educação a distância e periódicos científicos. Sua coluna analisa o mercado jurídico-editorial, suas tendências, notícias, peculiaridades, bem como a cultura artística e etílica que envolve o segmento. Voltada a bibliófilos jurídicos, profissionais do mercado editorial (jurídico ou não), autores, leitores e curiosos de plantão, será publicada quinzenalmente para que o leitor não se enjoe do colunista e tampouco se esqueça dele. Comentários, críticas e sugestões podem ser enviados para seu e-mail hendersonfurst@gmail.com ou via Facebook. A opinião do colunista não representa a de qualquer instituição científica ou profissional a qual seja vinculado.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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