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Ecio Salles e a literatura como missão
PublishNews, Henrique Rodrigues, 24/07/2019
Em sua coluna, Henrique Rodrigues aponta como o trabalho do criador da Flup (Festa Literária das Periferias) revolucionou a cena cultural carioca

Em 2012, me convidaram para participar de um evento literário no Morro dos Prazeres, aqui no Rio. Foi num sábado chuvoso e imaginei que não haveria ninguém com quem trocar ideias. O espanto foi chegar lá, passando por um muro com grafites inspirados nos personagens de Lima Barreto, que era o autor homenageado, e me ver numa estrutura gigante, com centenas de jovens da região entusiasmados. A ideia da então Festa Literária das UPPs era levar uma programação bacanuda até uma galera para quem a Flip era um evento distante e inacessível. Um dos cabeças por trás dessa ousadia era o produtor cultural e escritor Ecio Salles, que nos deixou anteontem, aos 50 anos.

Nos anos seguintes, as UPPs não deram muito certo, mas a festa literária sim. Inspirada no evento em Paraty, a Flup – posteriormente rebatizada de Festa Literária das Periferias – acabou indo além. Se a Flip chegou a um modelo que não poderia crescer muito, inclusive pela própria configuração da cidade onde é realizada, a Flup parece ter destampado uma caixa onde estavam comprimidas, há séculos, diversas formas de manifestações artísticas.

Daí que tenha abraçado todo tipo de inovação no que se refere às expressões e braços formativos dos últimos anos: bate-papos, slams, grafite, oficinas, criação de vídeos, publicações de livros. Até aplicativo de quiz literário apareceu. Além dos formatos, os conteúdos sempre foram transversais, saindo de estereótipos em relação à “cultura de periferia”, a partir da valorização do diálogo e da diversidade.

Foi como se o Rio de Janeiro, palco de mazelas e governos anódinos, mostrasse uma nova forma de se ler e de se reescrever. E não tardou que, desse processo com uma demanda gigantesca, surgissem nomes que figuram brilhantemente na comunidade literária nacional e internacional.

Talentos como o jovem Jessé Andarilho, que escreveu o primeiro livro pelo celular no trem e já está no seu segundo romance publicado pela Alfaguara; Ana Paula Lisboa, colunista do jornal O Globo e importante articuladora de movimentos sociais; Rodrigo Santos, cujo romance Macumba apresentou um thriller que mergulhou na formação do Brasil; e o prosador Geovani Martins, autor do livro de contos O sol na cabeça, que se tornou um fenômeno literário, tendo recebido grande investimento de divulgação da criteriosa Companhia das Letras. Para citar apenas alguns, mas se fosse listar aqui todos os escribas, poetas, performers, rappers, MCs, grafiteiros, roteiristas e tantos outros que foram abraçados pela Flup, a coluna ficaria quilométrica.

A grande verdade é que Ecio Salles e seu parceiro, o também escritor Julio Ludemir, entenderam como poucos a natureza profunda do Rio de Janeiro, descobrindo os meandros, atalhos e trilhas para fazer circular arte e expressão.

E se as desigualdades, a violência e o racismo construíram cercas de arame farpado pela cidade, esses caras conseguiram carnavalizar tudo. Ao melhor estilo Bakhtin, viraram tudo de cabeça para baixo e subverteram a ordem do que está estabelecido no nosso ambiente cultural: o palco principal foi para pretos, pretas, pobres, o holofote deve ir para quem tem o que dizer e, sobretudo, para quem precisa ouvir. Nesse aspecto, é preciso levantar duas características muito importantes que Ecio Salles aplicou como intelectual no front das atividades culturais.

O primeiro é justamente ter um ponto de partida da vida real. O produtor era oriundo do subúrbio carioca, não alguém que, de um lugar mais privilegiado, observa distante os fenômenos sociais. Seu livro História e Memória de Vigário Geral trata das tecnologias sociais criadas no bairro a partir da chacina que, em 1993, tornou o bairro conhecido mundialmente. Essa relação empática de quem realiza com quem recebe um projeto cultural faz com que haja maior naturalidade e fluidez, a partir da compreensão de lacunas e anseios do público, mesmo que ainda esteja em formação para determinado formato de evento, como a Flup. Daí a necessidade de espaço cada vez maior para produtores culturais da periferia: literatura e audiovisual são áreas predominantemente controladas por segmentos de maior poder financeiro – ainda que já se note maior democratização nos últimos anos, graças a projetos como a Flup.

O segundo, derivado do primeiro, é a proposta que nega a belicosidade e qualquer tipo de violência. Se nos últimos anos vemos a valorização de grupos até então calados e excluídos, é impossível não acompanhar também o tom agressivo com que os debates várias vezes tomam curso. Ecio Salles colocou em xeque a estratégia da autoafirmação de si como exclusão do outro. Convidou artistas de todos os tipos e cores, desde que suas obras coadunassem com o que precisava ser dito no evento, sem preconceito. Soube bem que os maiores inimigos estão crescendo enquanto segmentos brigam entre si, de maneira que se aproximou, e fez se aproximarem, pessoas e instituições que poderiam mais somar que dividir. De governos a ONGs, empresas privadas, fundações, institutos, Itaú, Organizações Globo, o próprio Sesc em que trabalho, BNDES – todos foram ouvidos pelo Ecio e entenderam que há um trabalho urgente a ser feito.

Para quem trabalha na área de promoção da cultura, um dos maiores desafios é iniciar uma célula de realizações, fidelizar público, conquistar interessados num tempo em que há tantas formas de atividades concorrendo pelo tempo das pessoas. No entanto, todos os eventos da Flup nas periferias cariocas estiveram cheios. Não por acaso, em 2016, receberam no Reino Unido o “London Book Fair International Excellence Awards”, como melhor evento literário do mundo.

Ecio Salles nos deixou precocemente, aos 50 anos, no auge da sua atuação e com muitas ideias para colocar na rua. Mas é possível dizer, sem nenhum exagero, que foi uma das figuras mais importantes desta década que caminha para o seu final. Peguei o título da coluna emprestado do livro de Nicolau Sevcenko sobre Lima Barreto e Euclides da Cunha, autores que o historiador considerava representativos da entrada do Brasil na modernidade. De certo modo, Ecio mostrou para o país o melhor caminho para não voltarmos à barbárie.

Perdi um grande amigo e companheiro de luta, mas o Brasil ganhou ideias que vão ecoar por muito tempo, porque formam uma tessitura costurada com o fio da coletividade. Suas duas filhas irão de se orgulhar muito de saber que o pai iniciou um desses grandes processos históricos que mudam para sempre uma sociedade. Porque as pontes que ele criou continuarão sendo atravessadas, e muitas outras, certamente, serão construídas.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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Amós Oz
Escritor israelense (1939-2018)
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