Pelo politicamente correto
PublishNews, Débora Thomé*, 12/09/2018
Para escritora Débora Thomé, o politicamente correto na literatura infantil é ótimo, mas isso não quer dizer que a literatura tenha que virar algo insípido, asséptico, boboca e pouco reflexivo

Minha filha saca, no meio de vários livros numa caixa, Fonchito e a lua, uma obra linda de Vargas Llosa para crianças. "Adoro este livro", ela diz. Meu rosto fica corado. O livro mora em minha casa há uns cinco anos, gosto muito dele, mas por muito tempo não sabia - até que um amigo mais versado me contou - que o personagem era o mesmo de Elogio à madrasta, cujas cenas picantes andei lendo nos últimos dias. O filho da madrasta consumido de desejo é o mesmo que tenta roubar, quase ingenuamente, um beijo de Nereida, no texto infantil. Lemos juntas os esforços de Fonchito (adoro a audácia deste menino!) para conquistar todo o mulheril, claro, sem contar a ela da madrasta. Pobre (ou feliz?) Dom Rigoberto!

Recentemente, por duas vezes, uma delas por conta do episódio Ana Maria Machado, li que o politicamente correto acabou com a literatura infantil e a espontaneidade das trocas. Deixem-me discordar e ajudar a colocar as coisas no seu devido lugar.

Na minha casa, não entra livro racista. Não entra. E não tem relativização que eu veja possível. (Ainda que tenha pontos sobre Monteiro Lobato, cujo texto entendo que foi feito em outro tempo e que demanda um diálogo sobre. Sou pró-Lobato.) Também não entra livro que diz que menina é pior que menino ou que homens ou mulheres não podem desejar quem bem entenderem. E se por aqui aparecerem falo: que livro horrível, onde já se viu menino só poder jogar bola e menina só brincar de boneca. O mundo seria bem melhor se seguíssemos estas regras básicas. É uma zona cinza, reconheço, afinal o que eu posso ver como racista, outras pessoas podem não ver etc. Mas, realmente, cabe ao adulto, estando por perto, tentar estimular reflexões. (Ok, dá trabalho, mas menos que ir à festa infantil.)

Criança tem que aprender a gostar de ler. Acredito piamente que é algo construído. Muito raro de nascer com a gente. Leitura, numa sociedade tão veloz, estimulante, requer prática, repetição e muito estímulo de pais e professores. Livro pode ser, mas não precisa - e, sobretudo, não deve - ser instrumento de aprendizado do estilo manual de vida. Nas idades menos avançadas, ele tem que despertar o prazer. Ser "legal", dar vontade de saber o final.

Já dei um par de vezes uma palestra em que chamo a atenção para as diferentes formas de comunicar a mesma complexidade do mundo. E fujo dos livros com receitas explícitas: meninas façam isso; meninos façam aquilo (mesmo que a intenção seja correta, eles são chaaaatos). Se é para desafiar os gêneros, gosto muito mais das princesas que soltam pum, criadas pelo Ilan Brenan, ou da Teresinha e Gabriela, da Ruth Rocha, ainda a minha preferida. Quando estava escrevendo o 50 brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer, apesar de toda a minha militância feminista, com o endosso da editora amada Ana Lima, sempre repeti: temos que apresentar muitas das mulheres, não só as feministas, não só as militantes. Militância tem hora. Este livro tem que dar prazer a quem lê, temos que estar atentas às fórmulas dos contos. E por isso nos esforçarmos.

Portanto, para tentar organizar as ideias, afirmo, com muita tranquilidade: politicamente correto é ótimo. Se você acha graça de gente ofendendo pessoa negra, mulher ou gay, vá se tratar. Mas isso não quer dizer que a literatura - e neste caso especificamente falo da literatura infantil - tenha que virar algo insípido, asséptico, boboca e pouco reflexivo. As crianças aprendem justamente no jogo, fazendo perguntas, nos vazios de informação, os quais completam com sua imaginação e percepção mais livre/limpa/crua do mundo. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa.

Se as respostas já estão todas dadas, se já existem fórmulas de viver e sociabilizar, para que pensar? O próximo passo, já sabem: acham um guru (que pode ser da seita, da política ou do palestrismo) e tome de contribuir para o Febeapá.

Por ora, fico com Fonchito e Vargas Llosa (sim, leio e releio feliz Vargas Llosa. Ele escreve bem, não tô nem aí que discorde de suas opções políticas). E Ana Maria Machado (idem), com seu Severino que faz chover. E, claro, com o politicamente correto.


Débora Thomé é escritora, cientista política e ativista, atuando sempre em torno de temas relacionados a mulher, visibilidade e poder. Tem formação no jornalismo, com passagem nos principais veículos de comunicação do país, além de cinco anos no selo Primeira Pessoa, de biografias, da Editora Sextante. É autora dos livros O Bolsa Família e a social democracia (FGV Editora), Minha amiga Mila (Autografia), 50 brasileiras incríveis para crescer antes (Record) e Mulheres e poder (FGV Editora). É fundadora do primeiro bloco de carnaval feminista do Rio de Janeiro, o Mulheres Rodada. Atualmente, coordena um projeto de pesquisa sobre artistas latino-americanas intitulado Outras Fridas.

Tags: Debora Thome
[12/09/2018 06:30:00]