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Saraiva, Cultura, Amazon e as livrarias independentes
PublishNews, Felipe Lindoso, 30/03/2017
Depois de analisar a situação das livrarias independentes nos EUA e a na Europa, Felipe Lindoso se questiona se 'será que se abre uma janela de oportunidade para as livrarias independentes' brasileira

Um dos temas mais permanentes nas discussões do mercado editorial e livreiro – aqui e alhures – é o papel e destino das livrarias independentes e das grandes cadeias. Essa discussão se intensificou com o surgimento da Amazon (e olhem que a varejista foi fundada em 1994, com início das atividades de comércio eletrônico em 1995 – já são 22 anos).

Naquele momento, era observado o auge do crescimento das grandes cadeias de livrarias nos EUA. As livrarias independentes as tinham como inimigo principal, e as notícias contabilizavam o fechamento de inúmeras lojas nas grandes e médias cidades.

É bom lembrar que, por aqui, a cadeia dominante era a Siciliano (que provocou polêmicas, discussões e gritos ao exigir maiores descontos, na voz de seu controlador, exatamente depois do Plano Real, com a sincera alegação de que ganhava dinheiro com a inflação e que agora as editoras tinham que ajudá-los a recuperar suas margens...). Hoje, comprada a preço de xepa de feira pela Saraiva, o nome da rede é história.

História como nos EUA é o nome da Borders e outras cadeias menores, que não conseguiram concorrer com a Amazon. A própria Barnes&Noble anda mal das pernas há anos, embora seu controlador jure que resistirá. E as livrarias independentes voltaram a florescer na gringolândia, graças a estratégias empresariais e institucionais, através da American Booksellers Association (ABA), como já mencionei várias vezes por aqui.

Na Europa, por sua vez, a Amazon enfrenta problemas, com um severo escrutínio das autoridades reguladoras do continente. E, surpreendentemente, a W. H. Smith, uma cadeia de livros que andou tropeçando, mostrou lucros no ano passado.

Na França e outros países do continente, a lei do preço fixo demonstra sua força e mantém vivas as livrarias independentes. Mas, também como já mostrei aqui, por trás da lei existe um sólido aparato que reúne editores, livreiros, e as “grandes superfícies”, em um comitê que supervisiona a aplicação da lei. Um dos aspectos importantes dessa legislação é que parte dos descontos concedidos pelas editoras às livrarias está condicionado a ações de promoção da leitura.

No entanto, a Amazon continua lépida e fagueira em seu crescimento. Já abriu algumas lojas físicas (modo de dizer, já que as lojas aplicam uma tecnologia muito mais avançada que a disponível em outros varejistas). Além da loja inicial em Seattle, a varejista tem outras em Boston, San Diego, Portland e New York – onde já são várias. E essas são livrarias – a Amazon já experimenta com verduras e alimentos, e agora saiu a notícia que fará o mesmo com eletrodomésticos e roupas. Mike Shatzkin, aqui levanta a possibilidade de que a Amazon se torne a maior varejista – de tudo – nos EUA, e a prazo relativamente curto. Veremos.

Uma das características das lojas da Amazon é a seleção de livros em exibição. De onde veio essa seleção? Bidu: do histórico de compras acumulados pelo site naquela região. Nada de livreiros que “conhecem” seus clientes e mantêm uma seleção de acordo com os gostos dos seus frequentadores. Bezos não se dá a esse luxo, e tudo é definido por algoritmos. Para ele, os dados são mais preciosos que qualquer subjetividade, e definem cada passo a ser dado.

Dito seja de passagem e fora do tema imediato: Amazon já é a maior editora de livros traduzidos dos EUA, e há muito o KDP é o dominante na autopublicação, embora aí ainda tenha concorrentes sérios, tanto de propriedade de outras editoras como independentes.

Voltando à nossa questão inicial.

Todo essa aparente cabeça de cera para voltar à questão inicial. O que acontece por aqui e será que se abre uma janela de oportunidade para as livrarias independentes do Bananão?

Por partes:

1)Saída da FNAC. A primeira constatação de quem acompanha a trajetória das lojas da empresa no Brasil, desde que comprou o então Ática Shopping Cultural é simples: o espaço de livros foi progressivamente encolhendo e está cada vez mais irrelevante. Parece que as lojas da FNAC concorrem mais com o Ponto Frio que, até mesmo, com a Saraiva. Nesta última, o espaço da informática cresce cada vez mais, ainda que não vendam cafeteiras (por enquanto?). Dessa maneira, me parece que os franceses saem eventualmente pelo acúmulo de erros na definição do que desejam com a empresa, o que levou a uma mixórdia no estoque. Some-se a isso a crise, e les messieurs querem aplicar seus euros onde lhes pareça mais rentável.

2)Fusão (ou compra) da Saraiva pela Cultura ou vice-versa. Quem percorre as várias lojas da Cultura fica atônito diante da semelhança do estoque entre elas. E com as ausências. Presença garantida mesmo só a dos best-sellers, e os livros das editoras que tentam impulsionar vendas comprando os espaços privilegiados das lojas. Quem procura novidades nem sempre encontra, e JAMAIS livros das editoras independentes. Para quem gostava de ir à livraria para acompanhar os lançamentos e tendências, é uma frustração. Na Saraiva, a mesma coisa, com uma ênfase muito maior nos best-sellers. Aliás, no post do Haroldo Ceravalo no PublishNews do dia 10 de março passado, ele diz que a Cultura “não é homogênea”; diz que as lojas são iguais, por conta da compra centralizada, “mas basta visitar as lojas dos shoppings Villa-Lobos, Iguatemi, Bourbon e Market Place e a livraria do Conjunto Nacional, todas em São Paulo, para perceber que os frequentadores são cultural e socialmente diversos o suficiente para não procurarem os mesmos livros”. Na verdade, o problema é que as lojas são homogêneas, quando não deveriam ser. Esse é o erro que a Amazon não comete em suas lojas físicas.

As duas empresas nacionais gostariam de ser tão cheias de segredos como a Amazon. A Saraiva ainda é obrigada a divulgar mais informações financeiras por ser de capital aberto. Mesmo assim, como vimos recentemente, manobras contábeis para ocultar aspectos de desempenho de facções de acionistas que se digladiam lá dentro já foram detectados pela CVM. Os dados provavelmente serão retificados, mas o que rola de briga internamente é conhecimento de poucas pessoas. E houve também a tentativa frustrada de avanço do investidor coreano, que acabou desistindo. Nem sei se por conta da resistência ou se porque percebeu a ferocidade do vespeiro.

A Cultura enfrenta sérios problemas financeiros há muito tempo. Disfarça depois dizendo que os aumentos de prazo, atrasados, etc., são “renegociados” com as editoras. Essa cortina de fumaça é muito opaca: as editoras acabam aceitando porque a empresa ainda é grande vendedora, e no final das contas é melhor ter os livros expostos que no depósito. Até quando?

As duas têm em comum péssimos mecanismos de busca. Procurar um livro por gênero – e mesmo por autor – é uma piada, nos dois sites. E há anos que é assim.

O resultado disso tudo, me parece, é que a fusão / venda / incorporação (chamem como queiram) das duas pode ser mais a união de dois bêbados chumbados que se apoiam do que outra coisa.

A alternativa de aquisição da Cultura pela Amazon foi levantada. Como, aliás, já havia sido levantada a aquisição da Saraiva quando se anunciou que a varejista gringa começaria vender livros impressos,

Cá com meus botões, não acredito. A turma do Jeff Bezos não gosta de limpar esqueletos e enterrar cadáveres. Se estiver pensando em lojas físicas, acho mais fácil começarem do zero, com a experiência já acumulada ao norte para desenvolver por aqui. Mas a Amazon ainda nem começou a vender “de tudo” na sua loja virtual brasileira! Talvez os problemas logísticos tenham um peso ainda maior nas suas considerações.

Tudo isso poderá ser uma oportunidade para as livrarias independentes?

O verbo no condicional é maravilhoso. Claro que poderá. Como poderiam tantas coisas.

Vejo as seguintes dificuldades para que as livrarias independentes tenham mais impulso. E isso independe da Amazon, do fracasso das grandes-mega, etc.

- Em sua grande maioria, as livrarias independentes são muito atrasadas tecnologicamente. Não existe também, em boa parte delas, um atendimento aos clientes que seja digno desse nome, com serviços de encomendas muito precários.

- Cada uma das livrarias independentes tem que arcar com investimentos próprios na área de informática, administração de estoques, etc. E não tem mentalidade, nem capacidade tecnológica e financeira para a análise de dados que permitiria diminuir o gap que a tecnologia da Amazon vai suprindo – e que as cadeias também não têm.

- Isso contrasta com a pujança do apoio tecnológico e institucional que a ABA presta a seus associados. Todo o background de tecnologia das independentes nos EUA é fornecido a preços módicos pela ABA, e cada loja só muda a cara do que aparece para o público. O apoio de estudos e ações que a ABA proporciona aos seus sócios também não tem paralelo com o de outras associações de livreiros. Quando venderam a feira deles para a Reed, souberam muito bem aplicar o dinheiro em atividades de apoio aos sócios. Enquanto isso, por aqui, a Associação Nacional de Livrarias (ANL) se preocupa com o Manual de Boas Práticas. Ou seja, de boas intenções...

- Questões institucionais. O projeto e Lei do Preço Fixo, apresentado pela senadora Fátima Bezerra, está descansando em paz em alguma gaveta do Senado. Seu primeiro relator, o Senador Lindbergh Farias, deixou a CCJ da casa. Seria um passo importante. Mas, como já levantei em outras oportunidades, não é uma panaceia, como se pode ver aqui. Quando a Embaixada da França, através do Bureau du Livre, organizou um seminário com representantes das várias entidades para explicar como funciona a legislação francesa, os representantes de TODAS as entidades do livro estavam presentes na abertura, discursaram, disseram que o evento era muito importante. Em seguida, TODOS deram no pé e foram cuidar dos seus negócios, que essa história dos detalhes é para os trouxas, entre os quais se incluíam eu e o Rui Campos, que ficou até o final.

Vários detalhes também têm seu peso no funcionamento das livrarias independentes. A crise na educação já fechou livrarias no campus da UERJ e em outras universidades; a crise econômica evidentemente cobra seu preço.

Há uma questão mais geral que vale a pena mencionar. Os custos e a expectativa de rendimento de aplicações é ditado pelo ritmo do mercado financeiro. E essa ciranda em que vivemos tem efeito, inclusive, no mercado imobiliário: donos de imóveis querem ter o mesmo rendimento que o dinheiro aplicado nos bancos. Daí...

Em resumo

- A falta de informação é generalizada. A Amazon, é claro, não informa nada de dados. A pesquisa de vendas online da Nielsen inclui os grandes varejistas e as vendas online deles, mas não as vendas das livrarias independentes. Desse modo, bases sólidas são escassas para uma análise mais precisa sobre a importância de cada canal.

- A Amazon pode começar a atuar no varejo físico? Pode, mas duvido. Entretanto, ninguém conhece a caixinha de surpresas do Bezos e de seus lugares-tenente locais.

- As independentes podem assumir um protagonismo maior? Podem, se houver uma superação dos problemas. Como são antigos, conhecidos e não enfrentados a não ser com atos de boa vontade, duvido.

- Eppur si muove, como disse Galileu. O simples crescimento demográfico e o aumento da população escolar (apesar dos esforços do atual governo para desmontar os mecanismos de inclusão antes estabelecidos) são por si só garantia de crescimento do mercado editorial. E como o vácuo é inadmissível, se houver um colapso das redes, saída da FNAC e outras tragédias(?) mais, algo surgirá para ocupar esse espaço.

Críticas, perguntas e sugestões são bem vindas no blog www.oxisdoproblema.com.br

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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Escritor catalão
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