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O editor sem partido
PublishNews, Henderson Fürst, 27/07/2016
Nessa semana, Henderson Fürst teve pesadelos envolvendo o 'Programa Escola sem Partido'. Depois de acordado, ele resolveu contar tudo aqui na sua coluna

Tive dois pesadelos essa semana.

No primeiro deles, o Projeto de Lei 867 / 2015 havia sido aprovado – o tão falado projeto de lei que pretende instituir o “Programa Escola Sem Partido”. Muitas pessoas saíram à Avenida Paulista e celebraram com a pluralíssima camisa-de-todas-as-causas-nacionais da seleção brasileira.

As gráficas tiveram um aquecimento de mercado imprimindo santinhos com os novos princípios da educação e com as novas restrições aos professores. No rodapé dos santinhos constavam números de disque-denúncia, caso um professor proferisse ideologia contrária à dos pais de algum de seus muitos alunos. Outro produto que fez sucesso nas gráficas foi a tábua dos seis mandamentos apartidários que toda escola passou a ser obrigada a expor publicamente em diversos lugares – ouvi dizer que até mesmo uma escola tinha incluído um jogral dos mandamentos após o Hino Nacional semanal.

Mais que isso: o MEC criou uma nova Secretaria de Interesses Apartidários (a “SIA”), que pensou numa série de medidas apartidárias para tornar a lei mais eficiente e, entre elas, o Programa Editora Sem Partido (também conhecido pela sigla “PrESePa”, cujas medidas passaram a ser chamadas, carinhosamente, de “presepadas” por editores e autores).

Entre outras presepadas, o programa estabelecia que nenhum livro seria comprado pelo governo se houvesse algum sinal de prevalecimento de qualquer ideologia, viés ou linha doutrinária. Da mesma forma, tais livros tampouco poderiam constar nos programas de disciplinas das escolas e universidades, públicas ou privadas.

Foi o caos. Instalamos uma placa dos novos mandamentos no editorial jurídico. Discutíamos a abrangência de cada termo da “tábua” para ver o que poderíamos ou não publicar para nosso público universitário. Imediatamente, o conselho editorial passou a ser complementado por um conselho pós-editorial apartidário, onde as obras eram revisadas em busca de possíveis privilégios a alguma corrente ideológica.

De imediato, fizemos mutirões para identificar as obras que, claramente ou não, adotavam alguma corrente doutrinária ou ideológicas, mesmo que expusessem as demais.

Com todos os mil-dedos que um editor precisa ter, liguei para os autores e começamos a tentar trabalhar com as diretrizes dos novos tempos. Comecei com minha paixão, biodireito. Dentre muitas posições jurídicas identificadas como alinhadas a alguma doutrina, a primeira autora que contatei era contra o aborto em todas as ocasiões. É uma posição admissível de se sustentar juridicamente – mesmo porque, há quem diga que tudo é possível de ser sustentado juridicamente – embora coincida com a opinião de muitas vertentes religiosas. Mas como fazer para explicar o aborto sem se posicionar de forma alguma quanto a ele? Ser um mero listador de possibilidades? E se esquecer alguma? São tantas! Minha autora simplesmente optou por transcrever os artigos 124 a 128 do Código Penal, fez uma paráfrase legislativa qualquer e seguiu adiante. Das 480 páginas, ficamos com apenas 120, quase todas meramente reprodutoras do texto legal.

Em seguida, aproveitei que um querido professor gaúcho de processo penal passava pela cidade e, bah, combinei um café para a mesma missão. Barbaridade! Como ensinar processo penal em tempos de grandes operações da Polícia Federal sem se posicionar de algum jeito? Como explicar as dez medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal com uma mera paráfrase? Alguns litros de chimarrão depois, meu colega começou a enxugar tanto suas lições que, logo menos, eram apenas fluxogramas, diagramas e reproduções legislativas.

Direito civil, que horror. Procrastinei a vida para não ter que imaginar como falar dos complexos temas sendo mero transcritor de “vertentes”. Usucapião coletivo, multiparentalidade, bem de família do fiador, testamento vital... tantos temas e tantas polêmicas me tomavam a cabeça que era preferível resolver as outras disciplinas antes.

Assim, guardei um dia inteiro para rever um manual de Direito Constitucional. Danou tudo! Impeachment: foi golpe ou não foi? Ficar calado também seria uma resposta ideológica – talvez até mesmo partidária.

Foi aí que pensei na presepada: como encontrar o ponto de equilíbrio deste fantástico mundo a-ideológico em todos os complexos problemas jurídicos? Liguei para alguns amigos editores de outras áreas científicas, técnicas e profissionais e não houve um que tivesse conseguido encontrar o caminho do fantástico mundo sem partido.

Autores e eu nos debruçamos por muitos dias sobre os textos, revendo-os à luz das presepadas. Já era tempo de começar a discutir as novas edições, e isso precisaria ser considerado com urgência. Não basta a dificuldade de manter obras jurídicas atualizadas com a imensidão de normas criadas diariamente por aqui, agora ainda teríamos que adequá-las às presepadas!

Com o passar das semanas, os textos estavam tão sintéticos que se tornaram praticamente legislação com notas remissivas e índice analítico. O novo livro didático jurídico tornou-se isto: uma paráfrase do texto normativo, facilmente substituído pela própria lei. E essa era minha angústia, pois a lei apresenta homens e cavalos, mas a realidade nos traz centauros – como achar que há algum lugar livre de qualquer pressuposto axiológico?

Desiludido, encontrei-me com um professor com quem me aconselho usualmente e contei das presepadas e da dificuldade de editar em tempos de cólera. Ele me convidou a assistir uma aula para compreender o que tinha se tornado uma aula de direito sem partido: todos os alunos estavam com um vade mecum na mão, que liam e recitavam, declamando cada artigo. As perguntas restringiam-se à semântica de algum termo jurídico desconhecido (temos uma vasta coleção de termos estranhos no vocabulário jurídico). Nada mais.

Acordei desesperado. Agarrei-me num punhado de livros que estavam à minha cabeceira e comecei a folheá-los para ver posicionamentos e doutrinas. Após o oitavo livro, respirei aliviado. Não passava de um sonho ruim!

O segundo pesadelo não foi melhor. Nele, eu escrevia uma coluna sobre “o editor sem partido” e, sem entender a ironia, um leitor achou as presepadas uma boa ideia. E o pior, levou-as adiante...

Nas horas ocupadas, Henderson Furst é editor jurídico do Grupo Editorial Nacional; nas horas livres, flautista, escritor e mestre cervejeiro. Bacharel em Direito pela UNESP, mestre e doutor em Bioética pelo CUSC, com pesquisas no Kennedy Institute of Ethics, Georgetown University, e doutor em Direito pela PUC-SP, Henderson também é professor de diversos programas de pós-graduação em Direito, tal como PUC-Campinas e Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado, foi editor jurídico da Thomson Reuters/Revista dos Tribunais e da Editora Saraiva. Atua nas linhas editoriais de obras universitárias, profissionais e acadêmicas, bem como projetos especiais, educação a distância e periódicos científicos. Sua coluna analisa o mercado jurídico-editorial, suas tendências, notícias, peculiaridades, bem como a cultura artística e etílica que envolve o segmento. Voltada a bibliófilos jurídicos, profissionais do mercado editorial (jurídico ou não), autores, leitores e curiosos de plantão, será publicada quinzenalmente para que o leitor não se enjoe do colunista e tampouco se esqueça dele. Comentários, críticas e sugestões podem ser enviados para seu e-mail hendersonfurst@gmail.com ou via Facebook. A opinião do colunista não representa a de qualquer instituição científica ou profissional a qual seja vinculado.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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