“The British Library”, a biblioteca britânica, do artista plástico nigeriano-britânico Yinka Shonibare, é uma das obras de destaque da exuberante exposição “Africa Africans” no Museu AfroBrasil, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. A biblioteca de Yinka é uma grande instalação composta de 6.225 livros coloridos identificados na lombada por nomes de imigrantes ou descendentes, célebres ou anônimos, que contribuíram para a cultura inglesa, mostrando como a Grã-Bretanha é uma sociedade multicultural. A exposição “Africa Africans” é, segundo o Museu AfroBrasil, a maior mostra de arte contemporânea africana já realizada no País, com cerca de 100 obras e mais de 20 artistas. A exposição fica até o dia 30 de agosto.
Os livros são encapados por tecidos coloridos, os dutch wax, que se popularizaram como “tecidos africanos tradicionais”, mas, de fato, são confeccionados na Holanda com o uso de técnicas baseadas no batik indonésio. Ou seja, se trata de uma invenção holandesa-indonésia que se tornou tradicional-africana e, nesta obra, é recriada por um artista britânico-nigeriano. Não é uma brincadeira de identidades. Identidades não são rótulos ou títulos estáticos, mas plurais, um conjunto que transita entre continentes, países, etnias e culturas. Mas que podem, ao mesmo tempo, formar um país ou uma biblioteca. “British Library”, nome da instalação, evoca evidentemente a British Library, a biblioteca nacional britânica que pertencia ao British Museum, e talvez Yinka esteja também lidando com a dimensão colonial do conhecimento, formação de museus e bibliotecas e sua interface de violência, exploração e preconceito.
A materialidade da biblioteca e dos livros, com suas estampas e cores, lombadas e espessuras, evoca a presença física das pessoas, dos imigrantes, da diversidade real e não apenas como uma neutra referência virtual. Assim, lembramos que existem pessoas em permanente movimento, incluindo as imigrações, os deslocamentos e também o desespero de milhares de refugiados em navios precários em seu êxodo da África para a Europa.
Bibliotecas, como espaços culturais e públicos, e seus programas de leitura, são abrigos e incubadoras de conhecimentos ancestrais e novos. Têm acumulado experiências significativas de políticas de inclusão, de cidadania e de tolerância. Contribuem para que pessoas e a sociedade criem e debatam ideias, inventem projetos e sonhos, estabeleçam relações e conexões, aprendam trabalhos e obtenham empregos. Em Jornalismo e Emoções, artigo recentemente publicado no suplemento Aliás, do Estadão, os pesquisadores norte-americanos Leni Bech Sillesen, Chris Up e David Uberti sugerem que a leitura de narrativas impressas acentua efetivamente a empatia entre as pessoas, o sentido da solidariedade individual e social – diferentemente da leitura virtual, superficial e distraída, sem compromisso e conexão com o mundo “real”. O texto mostra que a virtualização do Outro pode gerar o oposto de empatia e solidariedade.
A instalação “The British Library” também permite comentar o exemplar trabalho de edição de livros e catálogos de exposições que o Museu AfroBrasil realiza desde a sua fundação. São dezenas de publicações, entre elas Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão (exposição que ganhou um espaço próprio no Museu); Da cartografia do poder aos itinerários do saber; Teodoro Sampaio. O sábio negro entre os brancos e Quenum. O dragão entre dois mundos – e que podem ser adquiridas na loja do museu. Museus como a Pinacoteca e o Masp também costumam editar catálogos com as principais exposições.
Além disso, o Museu mantém a Biblioteca Carolina Maria de Jesus, acolhedora e simpática, com um bom acervo de temas afrobrasileiros, que inclui história, antropologia, história da África, escravidão, presença dos negros nos Estados Unidos e outros. A biblioteca, inaugurada em 2005, lembra Carolina, a catadora de papel que viveu na favela do Canindé, em São Paulo, e que se tornou escritora com a publicação, em 1960, do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (Edibolso).
Entre o acervo permanente e as excelentes exposições temporárias, o Museu AfroBrasil, dirigido por Emanoel Araújo, tem se constituído no mais instigante museu paulistano. As exposições do Museu AfroBrasil são sempre originais em sua curadoria e maneira de exibir, expondo documentos e arte, erudito e pop, artesanato e artistas consagrados, um diálogo entre as peças, seu modo de produção, sua inserção social e seu valor dentro do museu.
O conceito do Museu AfroBrasil propõe uma abordagem da presença afrobrasileira que não é tratada como uma influência externa sobre o Brasil, como uma onda imigrante, mas como parte constitutiva do que se tornou o País, da mesma forma que os índios, os imigrantes e todos os outros grupos populacionais. Assim, a exposição permanente não é linear ou cronológica, para não tornar “pontual” a presença afro-brasileira (a partir da escravidão), que, ao contrário, é fundadora e está em todos os tempos e espaços de nossa história. Somos como a “The British Library” de Yinka Shonibare, com suas identidades multiculturais individuais e coletivas, formando uma “biblioteca brasileira”.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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