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Alimentando o corpo e o espírito
PublishNews, 11/12/2013
Alimentando o corpo e o espírito

Um famoso “chef” submeteu-me contrato que assinaria com um jornal, para publicar uma coluna sobre gastronomia, basicamente contendo receitas. Questionei a cláusula que obrigava o contratado a só publicar material original, e que seria ele responsável pela publicação de conteúdo não original. Então não poderiam ser publicadas receitas de brigadeiro, strogonoff, feijoada, massa de pastel, empadas, cocadas, molho pesto, etc.? Não são originais, mas a quem pertencem? A discussão foi grande, e a saída foi o art. 45 da lei de direito autoral “Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: ... II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.”

Normalmente, seriam publicadas as receitas do próprio colunista, ou aquelas de autor desconhecido. E as que tivessem um criador notório, ou ao menos vinculado ao prato – um Bocuse, Troigros, Ferran Adrià, Alain Ducasse – seriam identificadas com a referência ao nome do artista.

Mas fica a indagação; receita culinária tem autor originário? Não pode ser copiada, ou plagiada? A resposta possível gira em torno do caráter industrial, ou não, da produção. Quantas receitas caseiras de pão de queijo existem no Brasil? Inúmeras, mas e aquela que é industrializada? Certamente seu cozinheiro chefe assinou termo de confidencialidade quanto aos ingredientes e modus faciendi, para evitar divulgar o segredo, tanto durante, quanto após o término do contrato de trabalho. Para ir um pouco mais longe, e a fórmula da Coca-Cola?

Há, no âmbito cultural, a proteção do patrimônio imaterial do país, tanto que a Constituição brasileira estipula:

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

Assim, o ofício das baianas do acarajé e o modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre são cadastrados no registro de bens imateriais do IPHAN. Sua proteção visa justamente o seu não desaparecimento, sua preservação pública e, obviamente, o não monopólio dessas expressões culturais.

Um jurista conhecido fala que culinária é química com a utilização de nomes vulgares (fusão, solidificação, uso de calor, frio, etc.) e por isso teria uma certa proteção legal. Ponto de vista interessante, mas achei apenas uma decisão judicial brasileira sobre autoria de receita culinária, na qual a “culinarista” teve rejeitado seu pedido, em São Paulo. A decisão diz que as receitas não são protegidas individualmente, mas uma compilação de receitas sim, pode ser protegida, pela originalidade da sua arrumação, bem como as fotos dos pratos prontos, que não devem ser copiadas.

Localizei também regulamentos de concursos de gastronomia em que se pede que as receitas não sejam cópias de outras já existentes, sob pena de desclassificação.

O alerta para o mercado editorial, então, é atentar para a originalidade das imagens (fotos ou vídeos) a serem publicadas em livros de culinária, ou adquiri-las em bancos de imagens de renome, e ainda especificar os créditos dos autores e a ordem de eventuais compilações.

O assunto poderia ir além, como a proteção de nomes de indicações geográficas (a bebida só pode utilizar o nome Champagne se for produzida naquela região da França), ou comidas históricas, como o alfenim, ou alfeolo (doce mouro que consta das Ordenações do Reino de Portugal), ou ainda a atuação do Codex Alimentarius, organismo da FAO (Food and Drug Administration, da ONU) que controla inúmeras regras sobre alimentação no mundo

O fato é que a gastronomia se popularizou com a difusão de novas mídias e técnicas, e se as receitas ainda não são protegidas, é bom ficar atento ao conteúdo e organização dos livros de gastronomia, tema que chama a atenção desde Brillat-Savarin, com a Fisiologia do Gosto, passando pelo banquete de Jacinto de Tormes, os quitutes de Tia Nastácia e chegando a contemporânea comida molecular. Literatura e gastronomia andam juntas, alimentam o espírito e o corpo, e o direito, por ora, fica espreitando essa parceria.

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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