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Pirulito de estalactite de gelo para se despedir de Tatiana Belinky
PublishNews, 05/07/2013
Pirulito de estalactite de gelo para se despedir de Tatiana Belinky

“O frio que fazia em Riga, no inverno, não era brincadeira. A temperatura chegava a cair abaixo dos 30 graus centígrados, e nesses dias nós crianças ficávamos presas em casa, no apartamento, como passarinhos na gaiola. A gente só podia ficar espiando o lado de fora pelas vidraças enfeitadas por caprichosos desenhos de cristais de geada, que a gente esfregava para formar uma claraboia transparente”.

É com essa lembrança do frio congelante do inverno em Riga, capital da Letônia, que a escritora Tatiana Belinky, nascida em 1919 e que faleceu há pouco, em 15 de junho de 2013, começa suas memórias em Transplante de menina. Da Rua dos Navios à Rua Jaguaribe, publicadas em 1989 pela editora Agir. Além de dezenas de livros escritos, organizados e traduzidos, Tatiana realizou, junto com Júlio Gouveia, a primeira adaptação da obra de Monteiro Lobato para a televisão na época em que esta era ao vivo.

Lembrando ainda do inverno, Tatiana prossegue: “As vidraças eram duplas, uma do lado de fora, outra dentro, com um espaço entre as duas, e ainda uma beirada que dava para a rua, um ‘aparador’ que a neve acolchoava de branco fofo e festivo. Nessa espécie de prateleira, mamãe colocava maçãs para assar no frio. Sim, porque o frio ali não era sequer como o de uma geladeira – coisas que, aliás, nós nem tínhamos em casa: era mais para freezer, e durante a noite gélida as maçãs encolhiam, ficavam murchas e escurinhas, ‘assadas’ naquela friagem. Aí, mamãe tirava as maçãs de lá e as colocava sob os radiadores do aquecimento central, onde elas se descongelavam e se transformavam em deliciosa sobremesa”.

Transplante de menina é um encantador livro de memórias de infância entre São Petersburgo, Riga e São Paulo, onde Tatiana aportou em 1929 aos dez anos de idade com os pais e dois irmãos menores. Cada cidade é descrita com olhar de menina. São memórias das brincadeiras, travessuras, aprontações, alegrias, dores, tristezas, pequenas maldades, as decepções com os adultos, as rejeições, tudo contado com singular sabor de infância não idealizada e sem nenhum espírito de ensinar algum padrão de comportamento em casa ou na rua. Memórias para ler e contar, repletas de episódios engraçados, curiosos, mas também emblemáticos do que era ser criança nos anos 1920 em Riga e São Paulo. Pode-se considerar este livro uma chave para viajar no universo da sua literatura e do seu gosto pelas histórias de várias culturas e países.

Tatiana lembra que, quando tinha cinco anos, apesar do inverno, “dava para brincar de batalha de bolas de neve ou de construir um homem-de-neve com olhos de carvão, boca de graveto e nariz de cenoura. Mas de vez em quando acontecia que a ponta do nosso próprio nariz começava a ficar congelada, e daí a gente pegava um punhado de neve e esfregava com força o nariz branco, duro e amortecido, até arder e ficar vermelhinho e sensível de novo – uma dorzinha até bem-vinda. Também era gostoso quebrar as estalactites de gelo que se formavam em calhas e beiradas, para chupá-las feito pirulito, para horror de Fraulein”.

O livro descreve extensamente as brincadeiras, a imaginação preenchendo horas e horas do brincar, como os jogos dramáticos e o teatro: “A gente tentava imitar tudo, e me lembro bem do meu primeiro ‘papel dramático’, ao redor dos meus quatro anos de idade: eu era uma mosca. Engatinhava pelo chão, esfregava o focinho com as patinhas, zumbindo e recitando uns versinhos que diziam que eu estava andando pelo teto, a caminho da cada do velho besouro meu amigo. E eu tinha certeza absoluta de andar pelo teto, de cabeça para baixo – uma sensação inesquecível”.

Lembrando dos livros que lia e ouvia seu pai contar, em russo, alemão (e letoniano), escreve ela que viajava “mais depressa que qualquer foguete atômico: com a rapidez do pensamento”. Tatiana também lembra as pequenas maldades e a aprontações, as tristezas e as decepções com os adultos, incluindo os pais, quando, entre outras situações, ela e o irmão menor ficaram sozinhos no hospital para extrair as amídalas com os adultos, incluindo os médicos, mentindo que não ia doer.

“Outra coisa que eu gostava de fazer era me meter medo. Pois é, eu gostava de sentir um pouco de medo”, escreve ela: “Não medo de assalto ou violência verdadeira, como acontece no mundo agora, mas sim o medo de faz-de-conta, medo de fantasma, de ogro, de vampiro e outras bruxarias”.

A chegada a São Paulo foi impressionante para a menina de dez anos. A caminho da Rua Jaguaribe, “tivemos de passar pelo centro da cidade. E foi aí que eu tive a primeira verdadeira visão de São Paulo, uma visão de impacto, que não esqueci mais”. A paisagem do prédio da Light no Anhangabaú foi tão assombrosa que o pai fez o táxi parar para que as crianças pudessem olhar com calma. A família empobrecida e imigrante foi viver na Rua Jaguaribe, próximo ao Largo do Arouche, onde a mãe começou a trabalhar como dentista e o pai como representante comercial, e a situação melhorou aos poucos.

Tatiana lembra do deslumbramento com a fartura das frutas, como as bananas, mas recorda também a dificuldade de integração com a criançada da região do Largo do Arouche, entre os meninos de classe média e média baixa, que andavam descalços e livres pela rua, e a crianças chiques que viviam em Higienópolis.

Tudo era diferente: a língua, os costumes, o clima e até as roupas de criança. Pequena imigrante, com um tipo físico diferente e originária de uma cultura diferente, ela recorda: “Até conseguir conquistar o meu espaço, me impor de certa forma, demorou bastante. Eu era tímida e estava traumatizada pelo desenraizamento e transplante para um mundo tão diferente do da minha primeira infância. E também pelas ‘guerras’ da Rua Jaguaribe, e, agora, na nova escola, pela minha diferença, que eu sentia como inferiorização em relação às outras meninas, quase todas de famílias abastadas, usando roupas finas e sapatos caros, essas coisas... Muitas vezes eu me senti solitária, isolada, rejeitada – sem violência, sem agressões diretas, sem palavras ásperas – mas mesmo assim rejeitada”.

Ler e reler Transplante de Menina e os livros de Tatiana Belinky é uma forma de nos despedirmos dessa escritora que manteve sempre o espírito de menina tímida com suas narrativas sabor de picolé de estalactite, cheias de imaginação, ora nos convidando a percorrer com seu trenó histórias de países e culturas da sua própria infância, ora nos embarcando em um carrinho de rolimã por leituras mais contemporâneas paulistanas.

Para concluir, mais uma lembrança da infância da menina Tatiana, a das fagulhas elétricas luminosas, que todos nós temos ou gostaríamos de ter: “Eu gostava de me meter no vão, de uns cinquenta centímetros de fundo, entre as duas portas da entrada do apartamento – porque a porta do hall do elevador também era dupla, como as janelas, não sei se por segurança ou por causa da friagem mesmo. Aquele vão era como uma espécie de armário, o lugar mais escuro da casa e, por isso eu me enfiava lá, com um pente de osso na mão, para fazer saltar faíscas do meu cabelo. Isso mesmo: o frio seco gera eletricidade estática, e o meu cabelo, basto e crespo, submetido a repetidas passadas do pente de osso, crepitava forte e soltava uma chuva de ‘estrelinhas’, fagulhas elétricas luminosas, que faziam o deleite do meu irmãozinho – e o meu próprio, claro. Essa eletricidade estática era tão forte que às vezes, na rua, quando no frio do inverno a gente tocava em metal com a mão na luva de lã, levava um choque de verdade. Doía, mas era interessante”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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