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Dos temas transversais às escritas pós-autônomas
PublishNews, 05/11/2012
Os temas transversais foram incorporados aos parâmetros curriculares nacionais com o intuito de introduzir e garantir a discussão de temas sociais na escola

Vou pegar carona na coluna do meu colega Pedro Almeida, onde ele discute os chamados temas transversais, já que este tema se constitui em um bom caminho, talvez sinuoso, para aprofundar uma reflexão sobre a leitura e a formação de leitores na escola.

Os temas transversais foram incorporados aos parâmetros curriculares nacionais (LDBEN 9394/96) com o intuito de introduzir e garantir a discussão de temas sociais na escola. O objetivo: formar cidadãos munidos de valores básicos para uma boa vivência e convivência no mundo democrático contemporâneo. Para isto, visava-se o contexto – daí a sua ramificação por todas as disciplinas – e uma preocupação unificadora de implantação de um discurso democrático, mas dominante.

Em vigor há mais de uma década, os temas transversais têm orientado a atuação de professores e editores preocupados com o desempenho de seus produtos na escola. Se não é difícil compreender as motivações que originaram a incorporação dos temas transversais, que tomaram a escola como formadora de cidadania – totalmente de acordo com o momento histórico de abertura democrática – o mesmo não ocorre quando se trata de verificar o resultado desta implantação.

A “nova escola” enfrentou dificuldades para implantar mecanicamente valores nem sempre incorporados à vida dos educadores, à vida das famílias, aos materiais didáticos e não didáticos e aos conteúdos culturais dominantes. Independentemente do acerto ou não da implantação dos temas transversais, que não cabe discutir aqui, a questão é o esvaziamento de conteúdo, quando se trata de transmitir conteúdos éticos e filosóficos. Pois é disso que se trata.

A artificialidade e banalização se impõem e no lugar da coerência e convicção, que podem gerar exemplos de comportamentos, temos o tratamento vazio de conteúdos e princípios de construção de visões de mundo. O mesmo ocorre quando se fala em formação leitora e no papel dos mediadores. Tais transmissões não se dão mecanicamente e nem podem ser vistas como atividades de caráter técnico. Estão em jogo escolhas, sensibilidades, compromissos que remetem a um universo muito mais amplo que o do conhecimento ou da “técnica”.

Tenho falado da necessidade de dar um salto, ou talvez de forma um pouco mais modesta, subir alguns degraus, na discussão da formação leitora, que concentra e mobiliza tantas energias e esforços. E tendo a ir por este caminho que tem muito para ser explorado. Daí as boas surpresas quando damos de cara com reflexões que indicam direções originais e instigantes. Este é o caso de uma entrevista de Josefina Ludmer, “Crisis y transformación”, publicada no Suplemento literário do jornal argentino el Clarín.

Crítica da cultura, Ludmer elaborou o conceito de “escrituras posautónomas” para se referir às práticas literárias contemporâneas, às “novas escrituras”, que marcam as mudanças trazidas pela tecnologia nas formas de escrever e de ler, a partir dos anos 80. Com base nesse referencial teórico, a autora mostra as diferenças entre as formas de leituras atuais e as de 30 anos atrás. E afirma que “uma mudança na tecnologia da escrita é uma mudança na literatura. O surgimento da escrita eletrônica [...] transformou a literatura: mudou a produção do livro, as maneiras de ler e circular e, por tanto, a construção da realidade e de sentido.” E continua, dizendo que hoje se lê: “De maneira muito mais superficial, no sentido de que as escritas são muito mais planas. Buscam sujeitos e experiências, mais do que construção de um mundo.”

E falando dos escritores afirma: “Se despolitizou a figura do escritor, não necessariamente a literatura, que é um instrumento de produção da realidade, e essa é a sua política. Hoje o escritor se transformou em um personagem midiático. [...] Antes se lia primeiro e depois se ia atrás do escritor. [...] A figura do escritor não é mais a do gênio inspirado do século XIX. Isto está vinculado à própria profissionalização.” E por conta disto tudo, uma das chaves fornecidas por Ludmer, se referindo à literatura no mundo atual, é que nela “não funcionam [mais] os critérios e as categorias com as quais líamos as literaturas clássicas.”

É necessário, sem dúvida, adentrar e entender melhor o pensamento da autora, no entanto, estamos diante de uma interpretação sensível às mudanças e transformações que nem sempre a nossa proximidade com os fatos permite enxergar. Que a chamada produção literária atual difere do que conhecemos como clássico, que o papel do escritor mudou, que a tecnologia está interferindo nas formas de ler e escrever, são fatos. É necessário olhar para esta realidade com olhos críticos e com certo distanciamento. Daí a importância de buscar novas categorias e conceitos que deem conta dos fenômenos que só empiricamente mantém uma relação com o passado.

O que tudo isso tem a ver com os temas transversais? Aparentemente a conexão pode parecer distante, mas se retomarmos a questão acima referida, da artificialidade e banalização que corresponde a um esvaziamento de conteúdos no mundo em que vivemos, ou nas palavras de Ludmer, a “maneira superficial”, à “despolitizacão”, temos algumas chaves importantes. O que está em questão não são nem os conteúdos para formar cidadãos – todos eles presentes, na sua melhor dimensão humana, na literatura, desde sempre –, nem a discussão de como formar leitores. O que está em questão é o tipo de visão de mundo produzida na contemporaneidade, responsável por pautar, entre muitas outras coisas, a sensibilidade, o gosto, o posicionamento diante do mundo, diante do outro.

Foco nos “sujeitos e experiências” versus “construção de mundos”, sentidos diferentes que produzem seres sociais diferentes. Mais ou menos comprometidos, mais ou menos intensos, mais ou menos sensíveis, mais ou menos aptos a se aprofundar, mais ou menos conformados, mais ou menos exigentes.

Muitos dos valores democráticos, vigentes nos parâmetros, se chocam no dia a dia com preconceitos ideológicos (religiosas, culturais etc.) profundos, que mudam o sentido das práticas e das ações daqueles que estão lá para transmiti-los. O mesmo se dá com os leitores que, sem dúvida, são cada vez em maior número, como mostra a lista dos mais vendidos e os números crescentes das pesquisas no Brasil. Mas o que se lê? Em que campo da cultura (e que cultura?) se inserem a maioria dos leitores? Pois a construção do gosto pela leitura anda de mãos dadas com o gosto musical, teatral, artístico. Mas também do próprio sentido que se dá ao tempo livre que, se para os gregos era o ócio – momento privilegiado da razão –, no mundo contemporâneo está, em grande parte, direcionado pelas grandes indústrias do entretenimento.

Retomando Pedro de Almeida e tentando responder a sua indagação sobre os efeitos da transversalidade, não se trata de uma questão de método, se assim fosse seria muito mais fácil. A solidez do caráter da criança ou a possibilidade dele se converter em um futuro leitor literário dependem mais da autonomia e do espírito crítico, do que exemplos de práticas que buscam a coerência com o discurso podem fomentar.

É o que temos. Uma discussão que pode parecer paralela, mas como diz Emília Gallego: “Sim, é para tanto, para muito e muito mais. Toda preocupação e ocupação é pouca, porque o que está em jogo é o destino dos valores que, intangíveis ou não, suportam nos seus ombros o destino da nossa Humanidade.”

Em tempo: Vale ler Por uma literatura sem adjetivos, de María Teresa Andruetto, Editora Pulo do Gato, 2012.

Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen e curadora da FLUPP. É também coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura, e da área de literatura para crianças e jovens da Revista Eletrônica Emília. Sua coluna pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Seu LinkedIn pode ser acessado aqui.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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