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As Horas – Livros que dividem experiências de vida com os leitores
PublishNews, 14/09/2011
As Horas

No meu tempo de universidade corria a crença de que toda obra literária é ficcional, mas sou dos que acreditam que toda obra literária é autobiográfica e que se pode decifrar uma pessoa pelas palavras, pelos assuntos, pela forma de se expressar. E se o escrito não parte da própria história pessoal, traz sua visão de mundo. E quase sempre temos aí momentos especiais, em que o autor divide com os leitores suas mais profundas reflexões. Esse é tema que venho destacar nesta coluna.

O filme As horas traz uma história recriada por Michael Cunningham a partir do romance escrito por Virginia Wolf, Ms Dolloway. Três mulheres vivendo em épocas distintas são personagens dos sentimentos vividos no romance.

A primeira personagem é a própria Virginia Wolf e sua história no exato momento em que escreve o livro, quando se vê exilada numa pequena cidade da Inglaterra para cuidar da saúde no momento mais crítico de sua vida. Sua doença se agrava, ela percebe que vai enlouquecer e decide por fim a tudo, deixando uma linda carta de amor dirigida ao marido: “Não creio que duas pessoas possam ser mais felizes do que fomos.” Essa é a frase repetida por todos os personagens centrais do filme, que percorre cerca de 100 anos e três gerações.

A segunda personagem, Laura Brown, interpretada por Julianne Moore, é uma dona de casa dos anos 50. Está grávida do segundo filho, tem um marido absolutamente cuidadoso, dedicado e, por consequência, controlador. Ela se sente sufocada, talvez perdida em uma vida em que não pode ir além. Está lendo Ms Dalloway. Então decide se matar. Hospeda-se em um hotel, leva vários comprimidos... mas qual a diferença entre morrer ou sumir? Isto não mudaria o sentimento de perda para os outros (filhos e marido). Então decide apenas ir embora sem deixar vestígios.

A terceira personagem é Clarissa, vivida por Meryl Streep, uma editora de livros de Nova York, que tem uma filha jovem adulta e vive um relacionamento estável com outra mulher (Miranda Richardson). Seu melhor amigo acaba de ganhar o maior prêmio literário de poesia e está morrendo em decorrência da Aids. Fora seu amante no passado, e agora é alguém que ela quer manter vivo a qualquer custo (e o que lhe tira o peso de ocupar-se com sua própria vida).

Vi e revi As horas inúmeras vezes. Fiquei impressionado com a criação da trama e o vai e vem dos personagens. Muitas vezes a história do livro parece inspirada nas vidas das outras duas personagens que lêem o livro no futuro. Outras, ele funciona como um destino traçado sobre o futuro.

Chamo a atenção para alguns detalhes deste filme:

Reparem na frase de Virgínia: “A vida de uma mulher inteira num único dia.”

Ela estabelece com isto o que somos de verdade. Como se um fragmento tão pequeno pudesse dizer mais de nós mesmos. E, para confirmar essa proposta, a trama traz a concentração de eventos tão importantes e decisivos num período de 24 horas.

Reparem na música que cria a expectativa, o passar dos segundos, o entrelaçamento das três histórias, como se a vida das três mulheres estivesse diretamente ligada. E na cadência das cenas que se comunicam em épocas distintas.

Reparem como o papel do livro está ali para ajudá-las a lidar com seus sentimentos. Há séculos escrever diários e outros textos é uma das principais formas de lidar com nossos sentimentos e questões pessoais mais complexas. Para mim, esse é o tipo mais antigo de terapia. E que muitos livros, mesmo os que são tratados como alta literatura, quando exteriorizam experiências pessoais, têm essa capacidade de nos ajudar a refletir mais sobre um assunto partindo de olhares que nos oferecem pontos de partida mais adiantados.

E, ao final, quando Laura Brown, a personagem de Julianne Moore aparece para Clarissa (Maryl Streep) após o suicídio de seu filho que nunca superou o abandono décadas atrás, toda a explicação razoável sobre o que ela fez ao desistir da família, que provocou um caos em todas as pessoas daquele núcleo, cai com uma simples explicação. Mostrando o óbvio, mas que muitas vezes nos esquecemos e acabamos julgando as pessoas rapidamente: a vida não é simples. Resignação, sublimação dos desejos, desintegração da personalidade e de tudo o que nos anima não é uma escolha para todo mundo.

Eram mulheres vivendo numa época em que não podiam ser exatamente quem gostariam; então, de certa forma, bancavam um papel e sabiam disso. Tiveram de optar, e cada uma fez a sua escolha diante das opções que as épocas diferentes lhes ofereceram: uma pela morte, outra pelo desaparecimento, e a terceira pela renovação. Mas todas escolheram coisas tão distintas privilegiando o amor.

Até a próxima coluna! Essa aqui foi sugerida por Aline Naomi, leitora da coluna. Se quiserem sugerir um tema, mandem para o meu blog: www.faroeditorial.wordpress.com. Postarei lá também um trecho do filme.

Pedro Almeida é jornalista profissional e professor de literatura, com curso de extensão em Marketing pela Universidade de Berkeley. Autor de diversos livros, dentre eles alguns ligados aos animais, uma de suas paixões. Atua no mercado editorial há 26 anos. Foi publisher em editoras como Ediouro, Novo Conceito, LeYa e Saraiva. E como editor associado para Arx; Caramelo e Planeta. É professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Em 2013 iniciou uma nova etapa de sua carreira, lançando a própria editora: Faro Editorial.

Sua coluna traz exemplos recolhidos do cinema, de séries de TV que ajudam a entender como funciona o mercado editorial na prática. Como é o trabalho de um ghost writer? O que está em jogo na hora de contratar um original? Como transformar um autor em um best-seller? Muitas dessas questões tão corriqueiras para um editor são o pano de fundo de alguns filmes que já passaram pelas nossas vidas. Quem quer trabalhar no mercado editorial encontrará nesses filmes algumas lições importantes. Quem já trabalha terá com quem “dividir o isolamento”, um dos estigmas dos editores de livros. Pedro Almeida coleciona alguns exemplos e vai comentá-los uma vez por mês.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews

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