O que têm em comum a história de um manuscrito levado secretamente para fora da União Soviética nos anos 1970 e que se tornou um dos mais impactantes livros de denúncia das prisões políticas naquele país, o futuro do livro digital na Rússia e, ainda, uma inusitada e surpreendente concessão do Kindle, o livro digital da Amazon, em relação ao design do livro impresso?
As três histórias/notícias envolvendo livros e o mercado editorial foram publicadas em dois cadernos encartados na última segunda-feira na Folha de S. Paulo: o The New York Times, que é publicado regularmente em parceria com a própria Folha, e a Gazeta Russa, encartado ocasionalmente. Não deixa de ser irônico receber notícias norte-americanas e russas lado a lado, ainda mais com uma história que lembra os tempos áureos da Guerra Fria: a publicação de Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsin.
Ambos os jornais traziam artigos sobre o livro digital em seus países. A reportagem da Gazeta Russa, de Rachel Morarjee, informa como a indústria editorial do país não se desenvolveu para acompanhar o interesse da população pela leitura. “Os russos são notadamente ávidos leitores, capazes de ainda hoje render popularidade a escritores românticos como Aleksandr Púshkin, considerado por muitos o maior poeta russo. A sociedade russa é altamente instruída e possui índices de alfabetização semelhantes aos dos mais desenvolvidos países da Europa Ocidental”, escreve a repórter. Na época do regime comunista, tiragens de livros populares atingiam facilmente 1 milhão de exemplares e custavam um valor simbólico e efetivamente acessível a toda a população.
Um total de 80% dos livros publicados na Rússia estaria concentrado em Moscou e São Petesburgo, já que o país não conta com uma rede estruturada de livrarias. Frente a esta demanda potencial, os e-books poderiam ser uma saída para responder ao interesse pela leitura, ainda mais que o país desenvolveu um leitor digital próprio para o mundo russo, o Pocketbook, que tem 43% do mercado local.
O artigo do NYT traz, por sua vez, um interessantíssimo ensaio de Joshua Brustein contando que o Kindle, o leitor eletrônico da Amazon, de longe o mais popular nos EUA, inserirá nos livros eletrônicos – além de outros números de localização digitais – a numeração de página correspondente à do livro em papel...
“Há algo de absurdo nisso”, escreve o autor, pois “os e-books, por definição, não têm páginas. Dependendo do tamanho da fonte, a tela pode ser avançada muitas vezes antes de ‘virar a página’. E há livros com muitas edições físicas ou textos que só existem no espaço digital”, escreve Brustein. Haveria, por parte dos leitores, uma necessidade psicológica de reconhecer, mesmo no formato digital, o design do livro em papel; a tela sem esta referência do livro impresso parece um “lugar nenhum” aos leitores...
Brustein faz uma comparação interessante, lembrando que na passagem do transporte a cavalo para as máquinas a vapor, a potência passou a ser medida em “cavalos” e os projetistas dos automóveis desenharam raios nas rodas em alusão às rodas de madeira das carruagens. Interessante comparação, já que neste caso o que mudou não foi apenas a velocidade ou a sua escala, mas a própria concepção de velocidade e deslocamento humanos, introduzindo, no caso do motor e do automóvel, uma dimensão de tempo e de espaço antes inexistentes. Ou, poderíamos acrescentar no caso do livro, a leitura não é uma questão apenas tecnológica, mas uma complexa somatória de habilidades, hábitos e tradições que não podem ser simplesmente rompidos. O próprio NYT publicou tempos atrás uma outra reportagem sobre a falta que capas e orelhas faziam aos livros e aos leitores.
Mas, voltando à história de manuscrito secreto de Arquipélago Gulag, este foi levado para fora da Rússia clandestinamente, conforme conta Natália Soljenítsina, viúva do escritor, em Gazeta Russa: “Nos primeiros anos de 1970, o escritor franco-suíço Sasha Andreie, acompanhado de uma delegação da Unesco, articulou um esquema para tirar o livro da Rússia. Foram dias de tensão. Se a obra fosse descoberta na fronteira seria o fim para o livro, para o autor e para o portador”.
O manuscrito denunciava os campos de trabalho forçados onde ficaram presos dissidentes e opositores do regime, como o próprio autor, preso em 1945, quando ainda servia o Exército, por escrever uma carta com críticas a Stálin. Depois de uma pena de oito anos de trabalhos forçados, o autor publicou O primeiro círculo e O Pavilhão de Cancerosos. Em 1970 recebeu o prêmio Nobel de Literatura, mas 1974 todos os seus livros foram oficialmente banidos do País (embora cópias clandestinas continuassem a circular) e ele acusado de traição. Mas ele já era lido e celebrado na URSS e em outros países, nos quais se tornou um símbolo da resistência contra a falta de democracia no regime soviético, para além do clima da Guerra Fria. Nas palavras de Natália, Soljenítsin “se tornou o cronista e confidente da tragédia popular russa”; sua obra acabaria relançada em russo nos anos 1990.
Difícil imaginar hoje em dia, na Era digital, a complexidade logística e os riscos envolvidos no simples contrabando de um manuscrito proibido. Quem assistiu o belíssimo filme “A vida dos outros”, viu uma história semelhante que se passa na Alemanha Oriental. E foi assim que muitos manuscritos cruzaram fronteiras e se tornaram livros memoráveis.
O livro digital promete agora eliminar toda barreira entre qualquer pessoa que queira ser autor e seus potenciais leitores, mas o que dizer dos manuscritos digitais que gostaríamos de ler para conhecer o que se passa dos lados de lá de todas as fronteiras e arquipélagos onde a sombra da censura e da falta de informação livre vigora? A internet, sua infinidade de sites e as redes sociais já cumprem este papel, mas onde estão os manuscritos digitais que vão se tornar os Arquipélagos Gulag do século 21? Talvez seja o caso de calçar pequenas ruelas eletrônicas de paralelepípedo para incentivar sua produção e circulação.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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