Bagolin defende o novo contra o 'conservadorismo e a tradição modorrenta' em seu discurso de entrega do Jabuti
PublishNews, Luiz Amando Bagolin, 1º/12/2017
Confira a íntegra do discurso que o curador do Prêmio Jabuti fez na noite de ontem

Luiz Armando Bagolin em seu discurso na entrega do Prêmio Jabuti | © Elisangela Borges
Luiz Armando Bagolin em seu discurso na entrega do Prêmio Jabuti | © Elisangela Borges

O maior e mais antigo prêmio dado ao livro brasileiro está prestes a completar 60 anos de existência e desejamos todos nós, autores, leitores, mercado, imprensa, que o Prêmio Jabuti continue durante muitos e muitos anos a celebrar o talento de nossa literatura, de nossas ciências, humanidades e de nossa produção editorial.

No Brasil de hoje, se lê mais do que se lia há seis décadas, mas ainda se lê muito pouco. Não conseguimos ainda, como nação, ultrapassar a fronteira do subdesenvolvimento em muitas áreas. Na área da leitura, em que pese termos grandes escritores, reconhecidos e celebrados internacionalmente, a maioria do povo brasileiro não tem ou nunca teve acesso a um livro, não frequenta bibliotecas (a maioria delas são infelizmente apenas depósitos de livros guardados sob a suspeição antipática de bibliotecários e arquivistas mal-humorados) e entre os mais jovens, mesmo os oriundos da classe média, não se acredita que, por meio da leitura, ainda possa conquistar-se algum benefício para a vida presente ou futura.

Muitos fatores contribuem para isso, e entre eles certamente se coloca o avanço das redes sociais, da produção audiovisual sob demanda e de outros recursos que estão em franco desenvolvimento com o suporte da rede mundial de computadores, a internet.

A leitura, hoje, para muitos, muitas vezes restringe-se apenas ao conteúdo dos posts e às legendas de filmes. Estamos voltando ao domínio da oralidade e de narrativas textuais curtas, rápidas, subordinadas ao tempo das redes sociais, ou, como prefiro dizer, à sociabilidade das redes.

É um fenômeno mundial, é claro, mas em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, este comportamento tem comprometido seriamente a preservação da memória escrita, do conjunto das formas de elocução tratadas como arte e, sobretudo, do futuro dos modos de expressão literários conhecidos, que já começaram a se adaptar a esses novos tempos; sim porque ou mudam ou arriscam-se a serem lançados às águas do esquecimento. Nunca estivemos tão próximos da condição tratada com finíssima ironia por Machado de Assis em seu conto A teoria do medalhão.

Muitos devem se lembrar desta história: o pai aconselha o filho a se dar bem na vida, a alcançar o prestígio numa sociedade que preza e é movida somente por aparências. O ofício para se tornar um medalhão consiste em repetir “as convenções consagradas pelo tempo”, renunciar a ter ideias próprias ou originais, afastando-se de todo tipo de especulação intelectual; antes, deve-se aderir àquelas opiniões aceitas nos círculos sociais nos quais se deseja introduzir, buscando a concordância fácil e a bajulação. Mais do que qualquer coisa, deve-se banir a ironia, porque é esta a causadora do incômodo desejo de reflexão, avessa ao exercício de um verdadeiro medalhão.

Em resumo, parece que Machado de Assis escreveu este conto para a nossa época. Hoje as ideias têm menos peso do que o protocolo para apresentá-las, as obras são desimportantes diante das honrarias que podem eventualmente receber, os eventos, como diria Jean François Lyotard, substituíram as obras.

A rapidez e a efemeridade com que as informações nos são apresentadas propiciam a repetição e desestimulam o desejo de experimentar o novo. Não quero fazer aqui nenhuma tentativa de futurologia, mas diante de tal condição, de uma sociabilidade que brinda a mesmice, que nos faz apenas querer a celebração das aparências, prêmios, honrarias e outros tipos de demonstração de valoração da nossa incrível capacidade de preferir a estabilidade às mudanças, continuarão por muito tempo ainda a se vestir com a roupagem do conservadorismo e da tradição modorrenta. E isso tanto mais quanto menos desenvolvida social, cultural, política e economicamente for a nossa sociedade.

Quero, ao contrário, pensar que em nosso país, onde grassou por algum tempo a liberdade duramente conquistada após anos de ditadura (liberdade que agora novamente é ameaçada por alguns medalhões de nosso presente preocupados mais em adequar os seus discursos e ações aos seus currais eleitorais do que manifestar apreço pela educação e pela cultura de nossas crianças e jovens) - seja ainda possível premiar o desejo de pensar o novo para além das convenções costumeiras.

Somos um país no qual a diversidade e a criatividade estão em toda a parte, manifestando-se em todas as cores, modos, meios e estratos sociais, um país que nos deu Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cora Coralina, Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus e tantos outros; oxalá continuará nos dando muitas gerações de cabeças que se erguem e têm a coragem de olhar mais longe.

É apenas esta esperança que nos permite estar aqui hoje celebrando e, principalmente, que justifica que prêmios literários como o Prêmio Jabuti continuem existindo. Prêmios que apenas congratulam os mesmos de sempre, que se constituem como uma festa para poucos, onde velhos conhecidos de várias ocasiões aplaudem-se uns aos outros, estão sujeitos ao desaparecimento ou à irrelevância.

Por isso, é com grata alegria que comunico hoje a todos vocês que a partir de sua próxima edição o Prêmio Jabuti será atualizado a fim de se conectar melhor com as demandas de leitores, autores e as expectativas do mercado editorial, de acordo com a nossa realidade presente.

Mudanças significativas, embora sutis, foram já introduzidas na edição deste ano, como a revisão do regulamento, o detalhamento dos critérios para a atribuição de notas pelos jurados e a inclusão de duas novas categorias: história em quadrinho e livro brasileiro publicado no exterior.

O prêmio deste ano conseguiu renovar e diversificar o corpo de jurados e o resultado vê-se na lista de finalistas de praticamente todas as categorias concorrentes, com a presença de muitas editoras diferentes representadas, além da participação de autores jovens e autores consagrados lado a lado. Queremos que o Prêmio Jabuti se torne cada vez mais inclusivo, que seja também um instrumento de promoção e estímulo a iniciativas progressistas na área de incentivo à leitura em todas as partes do país, e que possa revelar novos talentos assim como reconhecer a experiência dos mais longevos.

Por fim, é importante registrar a nossa homenagem àqueles autores, artistas e pensadores que nos deixaram este ano. Muitos deles foram nossos amigos, parceiros, ídolos, professores, certamente todos foram nossos mestres, e a sua obra constituirá para as gerações vindouras um forte e sólido esteio sobre o qual continuaremos a construir a cultura de nossa sociedade. Eles deixaram o nosso convívio para se tornarem parte de nossas almas e mentes.

Nosso adeus a Vida Alves, Toninho Mendes, Pedro Nonato da Costa, João Gilberto Noll, Antônio Cândido, Eduardo Portella, João Elias, Paulo Nogueira, Éclea Bosi, Elvira Vigna, Paulo Santana, José Osvaldo de Meira Penna, Luiz Melodia, Gabriel de Paula Machado, Sérgio Sá, Ruth Escobar, Marcus Acciolly, Ângela Lago, Ferreira Gullar.

VOCÊS NÃO SERÃO ESQUECIDOS!

VOCÊS NÃO SERÃO ESQUECIDOS!

[01/12/2017 10:54:00]