Menor e ignorada pela grande mídia nacional, Passo Fundo manteve seu espírito
PublishNews, Leonardo Neto, 09/10/2017
Com corte de mais de R$ 1 milhão no orçamento, Jornada de Passo Fundo foi menor, mas se mantém como ‘modelo na formação de leitores’

Jornalista Pedro Duarte dividiu a tenda Jornadinha com Jean-Claude Alphen | © Gelsoli Casagrande e Leonardo Andreoli / Divulgação
Jornalista Pedro Duarte dividiu a tenda Jornadinha com Jean-Claude Alphen | © Gelsoli Casagrande e Leonardo Andreoli / Divulgação

Uma tenda armada no meio de uma clareira no arborizado campus da Universidade de Passo Fundo. Um menino baixotinho, gordinho e cheio de certeza, levanta a mão. O nome dele é Igor. Ele cochicha no ouvido da mediadora do espaço. Virando-se para o jornalista e escritor Pedro Duarte, que estava no centro da tenda, ela diz ao microfone: “ele tem uma crítica para fazer sobre o teu livro, Pedro”. O menino então lasca, com aquela cadência típica da fala gaúcha: “Olha, Pedro, eu gostei do teu livro, mas ‘tu vive’ insistindo que Tony Moon [personagem que dá nome ao livro escrito por Duarte] é organizado. Diz isso no começo do livro e depois repete isso várias e várias vezes. Não achei necessário fazer isso”. Diante da colocação do pequeno Igor, Duarte respirou fundo e o que conseguiu responder foi apenas: “não concordo com você”.

Esse é – e sempre foi – o espírito da Jornada de Passo Fundo. É isso que faz da “movimentação cultural” do interior do Rio Grande do Sul ser única: nos encontros com as crianças, elas estão mais bem-preparadas do que os escritores (como se fosse possível se preparar para uma conversa com uma criança!). As surpresas não param aí. As perguntas que surgem são sempre pertinentes e demonstram que as crianças que chegaram ali na Jornada se prepararam para tal.

Quem quer fazer pergunta pros escritores levanta a mão! | © Divulgação
Quem quer fazer pergunta pros escritores levanta a mão! | © Divulgação

Essa 16ª edição da Jornada veio depois de um cataclismo. O anúncio do cancelamento da edição que era prevista para 2015 mexeu com as estruturas do evento. Como um terremoto, placas tectônicas se reacomodaram até chegar esta edição. Isso pôde ser visto claramente no orçamento da Jornada. Se em 2013, a última edição do evento bienal, foram investidos R$ 3,8 milhões; nessa edição de 2017, foram R$ 2,7 milhões. O corte de mais de R$ 1 milhão (sem considerar a inflação) no orçamento não estragou a alma do evento, mas teve consequências evidentes não no conteúdo da Jornada, mas na forma: era visível a falta de acabamento nos espaços montados especialmente para o evento. Nada que atrapalhasse, no entanto, o bom andamento das coisas.

A Jornada também ficou menor. Se em 2013, os organizadores falavam em 48 mil pessoas, dessa vez, o evento acomodou 22 mil. Reflexo óbvio do orçamento menor.

Cena do espetáculo inspirado nas obras dos quatro autores homenageados – Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Moacyr Scliar | © Divulgação
Cena do espetáculo inspirado nas obras dos quatro autores homenageados – Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Moacyr Scliar | © Divulgação

Na tenda principal, grandes shows coloridos, chamativos e barulhentos, tudo igual aos anos anteriores. No casting de autores, um time estrelado que incluiu os brasileiros Marina Colasanti, Conceição Evaristo, Roger Mello, Julian Fucks, Lúcia Hiratsuka, Michel Laub e os internacionais Ondjaki e Federico Andahazi.

Mas o melhor dessa Jornada aconteceu além dos muros da Universidade. A “movimentação cultural” de fato movimentou a cidade: chegou aos bares, aos hospitais e até fechou uma das faixas da Independência, a rua mais boêmia de Passo Fundo, com shows musicais e espetáculos teatrais. Esse era o grande trunfo da “nova gestão” da Jornada. E deu tudo muito certo. A Jornada convidou e as pessoas foram!

Digo isso em primeira pessoa. A convite de Fabiane Burlamarque e de Miguel Rettenmaier, os novos coordenadores da Jornada, fiz a mediação de um desses papos além dos muros da Jornada. Foi uma conversa deliciosa com os ilustradores Roger Mello e Rafael Coutinho. No mesmo dia e horário e dois bares para baixo, o midiático e global Zeca Camargo também batia papo com Pedro Gabriel (Meu nome é Antonio). Quando soube que dividiríamos o mesmo horário com os vizinhos Zeca e Pedro, imaginei que ficaríamos eu, Roger e Rafael bebendo e conversando sozinhos, mas não! A casa estava cheia! As pessoas foram!

Roger Mello, em primeiro plano, recebe duas passo-fundenses para a programação 'Livros na mesa: leituras boêmias' | © Leonardo Andreoli
Roger Mello, em primeiro plano, recebe duas passo-fundenses para a programação 'Livros na mesa: leituras boêmias' | © Leonardo Andreoli

E já que mudei o tom da prosa e estou escrevendo em primeira pessoa. Queria deixar registrado que tive a honra de ter feito parte da equipe de assessoria de imprensa da Jornada na sua edição de 2013 ao lado das sempre amigas Ivani Cardoso e Lu Fernandes. Naquela época, levamos para Passo Fundo jornalistas de importantes veículos nacionais como Estadão, Veja e até do Jornal Nacional. Preciso dizer que estranhei o silêncio dos jornalistas do Sul Maravilha com relação a essa edição. O cancelamento de 2015 movimentou os setoristas e serviu de combustível para páginas e páginas de jornais. Na época do cancelamento, o Estadão, por exemplo, chamou a Jornada de “grande projeto”, “modelo na formação de leitores”. Muito estranho que, nesta edição, o jornal não tenha dedicado uma única linha para o evento que julgava tão importante. E isso é só um exemplo. O mesmo aconteceu com Folha e Globo para citar mais dois dos grandes veículos de comunicação do Brasil. Não me parece razoável que a Jornada tenha perdido sua importância e relevância porque houve mudança na sua coordenação, já que, como insisto em dizer, a sua alma foi preservada.

O evento, que foi chamado por José Midlin de “alucinante” e arrancou de Ariano Suassuna – homenageado nesta edição – um “isto vale uma vida” pode ter sido menor do que a última edição. Pode não ter tido o mesmo número de pessoas. Pode não ter tido o acabamento das edições passadas. Pode até não ter tido o bacalhau da Lisete (quem esteve lá em anos anteriores sabe do que eu estou falando). Mas a Jornada brilhou. Para mim, pelo menos, serviu de alento, uma renovação na crença em um futuro possível. E isso, diante do cenário de distopia que se descortina na frente dos nossos olhos, vale muito! É... Valeu o esforço de ter ido a Passo Fundo.

[09/10/2017 06:30:00]