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Revolução russa ressurge em traduções diretas, textos inéditos e novos pontos de vista

Episódio histórico é tradicionalmente contado no Brasil por fontes secundárias e estrangeiras

Mulheres protestam em São Petersburgo às vésperas da Revolução Russa de 1917
Foto: Divulgação
Mulheres protestam em São Petersburgo às vésperas da Revolução Russa de 1917 Foto: Divulgação

RIO — O centenário da Revolução Russa será celebrado no dia 25 de outubro (pelo calendário juliano, a data marca a insurreição dos bolcheviques contra o governo provisório). Nestes 100 anos, não foram poucos os estudos, teses e pesquisas sobre o evento publicados no Brasil. Mas, mesmo considerável, nossa historiografia do assunto sempre esbarrou na falta de fontes primárias e de tradutores do russo. Esbarrou. Agora, novas antologias estão sendo lançadas, com textos em sua maioria inéditos, escritos antes, durante e logo após os acontecimentos de 1917 e traduzidos diretamente do russo. As publicações ajudam a mostrar a história por ângulos pouco explorados.

“Escritos de outubro” (Boitempo) traz a Revolução testemunhada e comentada por escritores, filósofos e artistas do país. “Manifestos vermelhos” (Companhia das Letras) reúne textos artísticos, manchetes de jornal, resoluções partidárias, discursos, avaliações, canções e poemas populares do período. “A revolução das mulheres — emancipação feminina na Rússia soviética” recupera artigos, atas, panfletos, ensaios escritos por mulheres do período.

— A pesquisa em estudos russos no Brasil tem avançado, principalmente nos últimos dez anos — avalia a tradutora e professora Graziela Schneider Urso, organizadora de “A revolução das mulheres”. — E sem dúvida o número de tradutores do russo se ampliou. Transversalmente, literatura, cultura, teoria, crítica, política e História russas têm destaque no Brasil desde o fim do século XIX. O que acontece é que as publicações giravam em torno dos mesmos autores. A efeméride trouxe o contexto ideal para que se retomassem, reeditassem ou retraduzissem alguns materiais, e se apresentassem novos.

REFÉNS DO CONHECIMENTO ‘INDIRETO’

Para Angelo Segrillo, professor de História da USP e autor de um importante trabalho a respeito da historiografia russa sobre a revolução, essas antologias com textos originais são fundamentais para elevar o entendimento da Revolução Russa.

— No Brasil, muito do que se sabe da Revolução é baseado em fontes secundárias, frequentemente livros de estrangeiros — explica ele. — Ficamos reféns desse conhecimento “indireto”, pois quem viu e analisou documentos originais foram esses autores, repassando versões de seu entendimento.

Organizador de “Manifestos vermelhos”, Daniel Aarão Reis cita um bordão conhecido dos historiadores: “As fontes são mudas, elas dependem das perguntas que você formula”.

— A consulta às fontes primárias é sempre enriquecedora. É muito difícil ler e falar o russo, então a tradução direta dos originais permite controlar melhor, inclusive, o que se ouve e lê de outros historiadores. Quisera que essa iniciativa fosse multiplicada — diz ele.

Até pelo ineditismo, os textos das antologias são recheados de curiosidades. Organizado por Bruno Barreto Gomide, “Escritos de outubro” mostra as dissonâncias no clima cultural russo em torno da Revolução, com debates de filósofos, artistas e escritores feitos no calor da hora. Nem todo escritor ou pensador russo era “revolucionário”, escreve Gomide na apresentação da obra. Alguns textos selecionados, inclusive, fazem críticas a 1917.

Já no caso da “Revolução das mulheres”, a ideia era preencher a ausência histórica de mulheres em publicações sobre a Rússia, trazendo textos de personalidades como a militante bolchevique Nadiéjda Krúpskaia, a líder revolucionária Aleksandra Kollontai ou ainda a política de origem francesa Inessa Armand.

— Há alguns anos, comecei uma pesquisa sobre autoras russas: escritoras, poetas, dramaturgas, jornalistas, revolucionárias, críticas literárias, artistas, arquitetas, diretoras de cinema etc. — conta a organizadora. — Os textos revelam o que deveria ser óbvio: que elas sempre escreveram, pensaram, atuaram em vários campos, fizeram política. Que é necessário conceber a importância das mulheres russas no processo revolucionário como a de todas as mulheres em todos os outros momentos históricos de todas as épocas e lugares, como parte essencial, seja nas linhas de frente, seja de forma direta, indireta, seja em suas lutas anônimas.

HISTÓRIA CONTADA POR HOMENS

Para a coletânea, Graziela selecionou textos com um recorte temporal — entre a Revolução de 1905 e as Revoluções de 1917, até meados dos anos 1930 — e temático, voltado ao período revolucionário, como o sufrágio universal e o direito ao divórcio; e com foco em questões em pauta até hoje, como a legalização do aborto e a igualdade de direitos. Como ela não encontrou nada em russo nas bibliotecas brasileiras e só pôde ir à Rússia em duas ocasiões, alguns textos não puderam ser localizados e outros foram enviados por amigos.

— Com o centenário, outros nomes vêm à tona — lembra Graziela. — Mas, curiosamente, quase não há mulheres nessas listas. Isso porque, em grande parte, a História é contada por homens, e o que é traduzido e publicado também é decidido, feito e avaliado por homens...