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Diversidade nas ruas de Paraty é destaque em Flip com poucos debates marcantes

Evento tido como elitista teve edição menor, mas com boas surpresas
Diva Guimarães, 77 anos, emocionou a todos com um relato sobre racismo durante a Flip Foto: Ana Branco / O Globo
Diva Guimarães, 77 anos, emocionou a todos com um relato sobre racismo durante a Flip Foto: Ana Branco / O Globo

PARATY — Nesta edição, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), encerrada ontem, mudou. A crise financeira e a diminuição de patrocínios fizeram com que o espaço principal de debates se transferisse de uma tenda com 850 lugares para a Igreja Matriz , onde cabem 450 pessoas. A programação também apresentou novidades, com equilíbrio inédito entre escritores homens e mulheres, além de uma também inédita participação de 30% de autores negros .

Mas a mudança principal, facilmente percebida após os cinco dias de Flip, não foi no palco. Foi na rua.

Por consequência da curadoria de Joselia Aguiar, jornalista que ocupou a função pela primeira vez — não foi anunciado se ela continua ou não na Flip para 2018 —, o público que veio a Paraty foi claramente mais plural. Havia mais negros, mais mulheres, mais diversidade.

Diva Guimarães, uma paranaense negra de 77 anos, professora aposentada que teve a coragem de pegar o microfone e pedir para si a palavra numa festa tradicionalmente elitista, foi a representação de que a voz da rua falou mais alto do que a voz do palco. Ela emocionou Paraty ao recordar episódios de sua vida em que sofreu racismo. O vídeo com sua participação teve, até ontem, mais de 8 milhões de visualizações na página da Flip no Facebook.

— Falei ali pela minha mãe, pelos meus antepassados. Ter desabafado naquela hora foi um renascimento, uma libertação — disse Diva, definitivamente o grande nome dessa Flip, sobre sua intervenção na mesa que uniu o ator Lázaro Ramos e a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques .

NOVOS PÚBLICOS

Diva foi o símbolo da presença maior de visitantes negros na Flip, ainda discreta dentro do espaço principal (o ingresso custava R$ 55), mas bastante clara em debates paralelos e no Auditório da Praça, ambos com entrada gratuita. Como ela, a documentarista mineira Tatiana Carvalho veio à festa pela primeira vez. Tatiane diz ter visto racismo nos olhos do público branco ao encontrar mais negros nas ruas de Paraty.

“Essas composições com mais diversidade deveriam acontecer sempre. Os jornalistas e os coletivos negros devem se apropriar dessas festas literárias como cidadãos brasileiros”

Joselia Aguiar
Curadora da Flip 2017

— Eles nos olharam como se fôssemos ETs, como se não soubessem o que fazer conosco — disse Tatiane, que veio de ônibus para a Flip. — Agora, somos nós que viramos a atração.

Além da curadoria, uma das razões para a mudança foi a atuação desses autores junto a suas redes e coletivos para atrair seus próprios públicos. Nomes como a escritora Conceição Evaristo e o professor Edimilson de Almeida Pereira , ainda sem amplitude nacional, são reconhecidíssimos por movimentos negros.

— Essas composições com mais diversidade deveriam acontecer sempre. Os jornalistas e os coletivos negros devem se apropriar dessas festas literárias como cidadãos brasileiros — disse Joselia Aguiar, no domingo, em entrevista coletiva de encerramento da festa literária.

POUCOS DESTAQUES NOS PALCOS

O palco da Flip, contudo, teve poucos momentos que podem ser considerados memoráveis. Conceição, domingo, numa mesa com a também escritora Ana Maria Gonçalves, foi responsável por um desses: ela foi ovacionada do início ao fim ao tratar sobre o preconceito contra a mulher negra na literatura . As participações dos professores Luiz Antonio Simas e Beatriz Resende também instigaram o público com críticas à política atual brasileira .

— Por que todos leem Clarice Lispector e conseguem perceber que ela fala de uma dúvida existencial, das angústias humanas, e não percebem isso na Carolina Maria de Jesus? — questionou Conceição, em sua mesa, comparando a percepção da academia sobre as obras da branca Clarice e da negra Carolina (mortas no mesmo ano, 1977).

Mas houve críticas sobre a falta de nomes internacionais de mais peso nesta Flip. Grandes editoras reclamaram que ofereceram autores consagrados e que não foram aceitos pela curadoria. Quem foi o grande autor da Flip 2017? Considerando que, pela primeira vez em 15 anos, os melhores debates ocorreram em torno da obra do escritor homenageado, a única resposta possível é Lima Barreto — ele próprio um autor negro, cuja obra se provou atual ao permitir discussões sobre racismo, injustiças e corrupção política.

Seis autores leem para O Globo trechos da obra de Lima Barreto durante a Flip em Paraty.
Seis autores leem para O Globo trechos da obra de Lima Barreto durante a Flip em Paraty.

A dúvida está no futuro. É inquestionável a importância de se buscar uma programação mais plural. A Flip cresceu ao longo de 15 anos em torno de debates literários e políticos fortes, revelando nomes brasileiros e estrangeiros, e ampliando ideias para qualquer tipo de espectador. Com o desafio de recuperar patrocínios — desde 2014, a queda na verba é de R$ 1 milhão por ano —, a festa terá, para 2018, que aprender com a experiência desta edição, para lembrar que a literatura pode, sim, criar pontes num país dividido por ideologias, crenças, raças e gêneros.