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Point de escritores, livraria Folha Seca ecoa Rio de um outro tempo

Local se consolida como espaço para pensar outras formas de viver a cidade
A fachada da livraria na Rua do Ouvidor, 37, por Cássio Loredano - um de seus ilustres frequentadores Foto: Cássio Loredano / Agência O GLOBO
A fachada da livraria na Rua do Ouvidor, 37, por Cássio Loredano - um de seus ilustres frequentadores Foto: Cássio Loredano / Agência O GLOBO

RIO — Em uma crônica de 1865, Machado de Assis descreveu o ambiente de uma antiga livraria do século XIX, onde chegou a trabalhar em sua juventude. Lá, vez por outra, reunia-se a Sociedade Petalógica (de peta, sinônimo de mentira) — uma associação sem atas, sem metas, sem carteirinha, com representantes de diversas classes sociais, letrados ou não. Nesse Rio Antigo, dissolvido na poeira dos séculos, os membros do excêntrico grupo conversavam sobre tudo, escreveu o Bruxo, “desde a retirada de um ministro até a pirueta da dançarina da moda”.

Rodrigo Ferrari tem uma livraria no Rio, neste início do século XXI. Neste outro tempo, nesta outra cidade, o livreiro fez brotar a sua própria versão da Sociedade Petalógica. Encravada na Rua do Ouvidor desde a virada de 2003 para 2004 (antes, entre 1998 e 2003, ficava num espaço no Centro de Arte Hélio Oiticica), a Folha Seca se tornou ponto de encontro de acadêmicos, compositores e boêmios de todo tipo — o povo da rua, enfim.

Seja num dia comum ou numa tarde de evento, a livraria funciona como um espaço de resistência de um Rio cada vez mais raro. Nas suas mesas, frequentadas por figuras como os jornalistas Ruy Castro, Álvaro Costa e Silva e Lira Neto, o historiador Luiz Antonio Simas, o romancista Alberto Mussa e o cartunista Cássio Loredano (que assina a ilustração dessa página), entre outros, surgem formas muito peculiares de pensar os dilemas passados, presentes e futuros do estar junto carioca. Uma conversa solta e espontânea.

— Essa ideia do papo furado que acontece ali retrata uma cidade virada para a rua que de certa maneira está morrendo — avalia Simas, autor de livros como “Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros”. — Livrarias de rua estão sendo engolidas pelas dos shoppings, onde você não tem a conversa, o vínculo. É uma cidade de rua que é uma flagrante oposição à cidade de passagem. É a esquina, o encontro.

Para Simas, é aí que “a cidade acontece”. Fora do Twitter e do Facebook. E sem a urgência de produzir, de estar em trânsito.

— Ali surgiram conversas produtivas, exatamente porque não as percebemos como produtivas — diz. — É o que acontece ao falarmos sem compromisso da vida, de futebol, de samba. Isso vai maturando uma série de ideias. Escrevi muita coisa por causa do ambiente da Folha.

Lira Neto lançou o seu "Uma história do samba" na Folha Seca, seu "escritório informal" Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Lira Neto lançou o seu "Uma história do samba" na Folha Seca, seu "escritório informal" Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Por razões que misturam afeto, gratidão ou a simples vontade de beber e papear, muitos autores-frequentadores lançam suas obras por lá. É o caso de Alberto Mussa, que nesta tarde, a partir das 14h, lança seu último romance, “A hipótese humana” — não por acaso, o escritor faz uma discreta homenagem à livraria numa passagem do livro. Mussa já havia feito uma sessão de autógrafos na última quarta, na Travessa do Leblon, mas exigiu um repeteco no seu point literário.

Não são lançamentos como outro qualquer, entretanto. O de “A hipótese humana” terá cerveja gelada e caldinho de feijão. No mês passado, o do “Uma história do samba” (Companhia das Letras), de Lira Neto, teve angu, roda de samba e o autor — fardado com uma camisa do Ceará Sporting Club — escrevendo dedicatórias em pé, com uma caneta na mão e um copo de cerveja na outra.

Foi de tanto bater ponto no Folha que Lira acabou sendo convencido pelos amigos — e também frequentadores assíduos — a empreender “esse projeto louco de uma biografia do samba”, como ele define. De cerveja em cerveja, entre um samba e outro, o escritor de best sellers como “Getúlio” deixou de olhar com medo a épica trajetória do mais brasileiro dos gênero musicais. Segundo Álvaro Costa e Silva, o Marechal, não foi o primeiro livro a surgir de reuniões espontâneas no Folha.

— Váaaaarios livros surgiram lá — diz Marechal. — Um puxa uma ideia, outro puxa outra, e aí os projetos vão surgindo.

Ao reunir tantas cabeças pensantes da cidade, a Folha transformou a Ouvidor numa espécie de Rive Gauche da cultura carioca, em que os encontros acontecem sem marcação prévia.

— Digão (Ferrari) sempre foi um cara agregador — lembra Simas. — Se ele tivesse uma farmácia, ia ser ponto de encontro de amigos que iriam lá tomar Engov e bater papo. Assim como a Daniela Duarte ( que, mais que frequentadora assídua hoje, foi quem fundou a Folha Seca com Ferrari, com quem manteve sociedade até 2009 ).

Ferrari chama atenção para outro ponto:

— Por ser uma livraria dedicada ao que chamo de temas cariocas, como futebol, música e história do Rio, acaba atraindo quem pensa a cidade.

Ponto de excelência no século XIX, quando abrigava a Livraria Garnier, a Rua do Ouvidor passou um longo período no limbo até aparecer a Folha. Para Ruy Castro, a chegada do estabelecimento provocou um renascimento cultural no local.

— Assim como a ( livraria ) Dantes fez a Dias Ferreira, a Folha Seca fez a Ouvidor. Antes de a Folha aparecer, não tinha nada lá. Não tinha livraria, samba... Tinha que ter um espaço como esse que congrega, para formar o que apareceu em volta.

“Não tinha nada lá” não é um exagero. Ferrari lembra que, no início, os vizinhos achavam que ele era maluco por abrir a casa no sábado, numa rua então erma. Depois, o cenário foi se desenhando como é hoje, com a chegada da Brasserie Rosário, a abertura aos sábados de bares/restaurantes como a Toca do Baiacu e o surgimento do Samba da Ouvidor — que se originou de rodas informais feitas em torno da Folha Seca. Até uma casa editorial já surgiu, a Editora Folha Seca — que publicou livros como “O vidente míope”, de Loredano e Simas, sobre os desenhos de J. Carlos.

O livreiro lembra de vários momentos-síntese do espírito carioca da Folha Seca — como quando Beth Carvalho foi para lá logo após uma homenagem a Hugo Chávez na Assembleia Legislativa, fez uma fezinha na banca do bicho que havia em frente à livraria e ganhou. Mas talvez a melhor imagem seja a de Ferrari pedindo a mesma música sempre que há um samba: “Saudades da Guanabara”, de Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro. “Brasil/ Tira as flechas do peito do meu padroeiro/ Que São Sebastião do Rio de Janeiro/ Ainda pode se salvar”, canta a Ouvidor, ecoando as conversas da Sociedade Petalógica.