Cultura Livros

Jornalista portuguesa vem à Flip e lançará livro sobre racismo na África lusófona

Joana Gorjão Henriques vai participar de mesa com o ator Lázaro Ramos em Paraty

Investigação. A Joana Gorjão Henriques viajou às cinco ex-colônias na África para escrever o livro
Foto: Divulgação/Ricardo Maneira
Investigação. A Joana Gorjão Henriques viajou às cinco ex-colônias na África para escrever o livro Foto: Divulgação/Ricardo Maneira

RIO - A jornalista Joana Gorjão Henriques viajou por Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe em busca de respostas para uma pergunta: como a dominação portuguesa marcou as relações raciais desses países? Após mais de cem entrevistas, ela publicou uma série de reportagens no jornal “Público” e escreveu o livro “Racismo em português — O lado esquecido do colonialismo” (Tinta da China), obra que será lançada na 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, quando vai participar de uma mesa com o ator Lázaro Ramos. Ela aponta que as marcas da colonização estão em todas as ex-colônias, incluindo o Brasil, país que visitou a trabalho em 2014. Ao GLOBO, em entrevista por telefone, a jornalista critica a postura dos portugueses frente ao passado e comenta suas descobertas.

Como surgiu seu interesse pelas questões raciais?

Meu interesse vem do fato de que o racismo continua a ser algo incompreensível. Como nós discriminamos por causa da cor da pele de alguém? Para mim, é sempre uma grande perplexidade ver isso acontecer em 2017. Em Portugal, falamos publicamente muito pouco da relação do colonialismo com o racismo. Há estudos acadêmicos etc., mas na arena pública esse debate é um tabu. E essa é uma das principais raízes do racismo hoje em Portugal: o racismo do colonialismo português e a forma como durante tantos séculos, nós, como sistema colonial, usamos a discriminação racial para impor o nosso poder.

Como Portugal trata essa memória da escravidão e do colonialismo em suas colônias na África e na América?

Essa é uma questão muito importante. A partir de meados do século XX, o regime de Salazar adotou a visão lusotropicalista de Gilberto Freyre para justificar a miscigenação dos portugueses com as populações locais e provar que Portugal era um colonizador “melhor”. Apesar da miscigenação não ser do seu agrado, foi um argumento que serviu de justificativa para o fato de Portugal ainda manter colônias na África. Dizia-se que Portugal não tinha colônias, mas províncias ultramarinas. Essa narrativa continuou a ser veiculada mesmo após a queda de Salazar. Até hoje, nos livros didáticos, Portugal aparece como um país que colonizou de forma mais branda do que os outros e que se misturou com as populações locais.

E em relação à escravidão?

Na semana passada, conversei com alunos de um colégio e perguntei qual a versão que eles aprenderam sobre o papel de Portugal na escravatura. Eles disseram que o país foi um dos precursores do comércio transatlântico de escravos, mas foi também um dos primeiros a abolir a escravatura, com a decisão do Marquês de Pombal em 1761 (que ordenou que passariam a ser livres os escravos que entrassem em Portugal, mas não libertou os que lá viviam). Ora, isso é uma mentira. O fim do tráfico e a abolição no império português só ocorreram no século XIX. Os livros também não falam da continuação da escravidão através do regime de trabalho forçado que existiu nas colônias. A imagem de um colonialismo doce tem sido desconstruída na academia, mas o discurso público continua a veiculá-la.

Como o racismo se manifesta hoje nas ex-colônias portuguesas na África?

Nos últimos anos, com a crise, houve uma nova onda de emigração de portugueses para as ex-colônias, principalmente Angola e Moçambique. Nesses países há uma grande necessidade de quadros para empresas, e a tendência é a importação de quadros portugueses. Quando os portugueses vão para um país como Angola e Moçambique, para assumir cargos de chefia, e não estão conscientes de seu lugar de privilégio na História, criam tensões. Eles carregam esse privilégio que está na pele, na condição social e econômica. Há alguns portugueses com tendências neocoloniais. Não só não têm consciência do seu privilégio como ainda querem prolongá-lo, subjugando e subalternizando os locais.

Houve nas colônias portuguesas na África políticas oficiais de discriminação?

Na década de 1920, foi instituído o Código do Indigenato, que criou várias categorias de cidadãos: os indígenas, que não tinham direitos e estavam completamente à margem da sociedade; os assimilados, que eram indígenas aprovados em determinados testes, como saber falar português e se comportar à mesa; e os colonos. Mesmo após o fim oficial do código, em 1961, a segregação continuou. Meus entrevistados lembram que em Moçambique os negros sempre estavam na parte de trás dos ônibus. A escritora Paulina Chiziane relata que, quando a professora de matemática viu que ela tinha a melhor nota da turma na prova, rasgou a folha e disse na frente de todos: “seus brancos, até a preta tem uma nota melhor do que vocês. Vamos repetir o teste”. A segregação racial existiu até a descolonização.

O racismo nas ex-colônias africanas é diferente daquele visto no Brasil?

Todos os depoimentos deixam claro que o racismo é fruto da relação colonial. A discriminação é a reprodução do que foi feito pelos brancos portugueses. Um dos meus entrevistados me disse: “o racismo transforma a diferença em defeito”. É uma boa definição que vale para Brasil, Portugal e qualquer ex-colônia. E a colonização teve como motor o privilégio branco, que ainda hoje perdura nessas sociedades. E eu não excluo Portugal.