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'Quero ajudar a criança a ler o mundo', diz Jean-Claude Alphen

Premiado ilustrador agora ganha destaque ao contar suas próprias histórias infantis
A FERA E A BELA. Ilustração do livro "Escondida" (2017) Foto: Jean-Claude Alphen / Reprodução
A FERA E A BELA. Ilustração do livro "Escondida" (2017) Foto: Jean-Claude Alphen / Reprodução

Era uma vez um francês que chegou na Amazônia em 1950 atrás de aventura. Após várias delas, Paul Alphen descobriu em Rondônia uma mina de cassiterita, mineral de onde se extrai o estanho. Ficou rico, casou com a alagoana Claudia Ramos e foi morar no Rio, de frente para o mar. Mas não sossegou: seguindo uma dica, investiu tudo o que tinha em máquinas para explorar diamantes nos cafundós de Mato Grosso. Mas, chegando lá, não havia diamantes, só prejuízo.

Falido, em 1966 Paul trocou a praia do Leme pelo frio de Metz, sua cidade natal no nordeste da França. Levou a mulher e três filhos — incluindo um bebê carioca de 1 ano que teria seu futuro marcado pela viagem. Jean-Claude Alphen tornou-se um ilustrador de livros para crianças conhecido, premiado e, como ele diz, “híbrido”.

— Viver dez anos da infância em uma terra gelada me deu referências que estão até hoje no meu trabalho. Já o Brasil me deu o pigmento, a luminosidade das cores. Com pai francês e mãe das Alagoas, sou metade croissant, metade tapioca.

Jean-Claude vive em São Paulo, onde a família Alphen se instalou quando voltou ao Brasil. Em três décadas de carreira, já recebeu inúmeros prêmios como o da revista Crescer, o Glória Pondé, da Fundação Biblioteca Nacional, e o selo Altamente Recomendável, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Foi ainda duas vezes finalista do Jabuti.  Ilustrou 80 livros de autores como Ruth Rocha, Tatiana Belinky e Pedro Bandeira. Nos últimos anos, encarou o desafio de ser autor infantil também: já são 20 os títulos com seu texto e seu traço.

Sua nova obra, “Escondida” (Edições SM), é um caso a parte. Trata-se um livro-imagem, sem palavras, só ilustrações. Para Alphen, a narrativa da menina que observa animais selvagens de uma moita (imagem abaixo) mexe com um sentimento muito forte nas brincadeiras de seus jovens leitores:

— É basicamente uma história sobre como o medo pode ser gostoso.

À seguir, os principais trechos da conversa onde o autor de 51 anos, pai de duas filhas, falou sobre sua trajetória, processo criativo e como livros infantis podem ajudar as crianças.

Como surgiu “Escondida”, uma história só com ilustrações?

Foi um convite da editora. Mas não me sentia apto a fazer. Há 15 anos, cheguei realizar algo parecido, mas considero fraco como desempenho. Fazer narrativa sem palavras é muito complicado, tem que ser bem fechada. Geralmente, o texto preenche as lacunas do desenho, ou o contrário. Até que surgiu uma ideia em que eu percebi: essa história aqui não precisa de texto.

Percebeu fazendo rascunhos....

Não. Mesmo sendo ilustrador na origem, eu sempre preferi escrever. Se eu tenho uma ideia eu escrevo, escrevo, escrevo toda a história e depois vou ver o que fiz. Aí vou cortando texto, então faço um storyboard , acresento ilustrações. Tenho uma batelada de caderninhos com ideias minhas para usar.

Pela descrição, parece o processo de criação de histórias em quadrinhos.

Cresci lendo gibis. Na França, minha geração era muito voltada para quadrinhos. Claro que lia livros infantis, mas não tenho tantas lembranças. Eu contava os dias esperando as revistas chegarem no bureau de tabac , a tacabaria. Não sei como é hoje, mas nos anos 1970 as crianças francesas tinham de ir na tabacaria para conhecer as novidades de Tintin e Asterix.

Havia algum Brasil na sua infância?

Uma coisa engraçada é que eu só conhecia o Brasil pela minha mãe. Eu não falava, mas entendia português por causa dela. Ouvia muita música do Jorge Ben. Mas era uma miragem. Me lembro de uma viagem para Portugal com os meus pais. A gente chegou na praia, vi umas palmeiras e gente falando a língua da minha mãe, achei que era o Brasil.

E aí, após 10 anos na França, vocês voltaram.

Sim, meu pai perdeu tudo com a história dos diamantes, recomeçou por baixo, mas foi subindo. E recebeu a oferta de montar uma firma francesa aqui. Só não contou para ninguém que a gente não ia para o Rio, mas para São Paulo. Para minha mãe, foi um desânimo.

E para você?

Eu não tinha a mínima noção. Descobri que o Brasil não era a Amazônia das lendas do meu pai. Metz é uma cidade de 120 mil habitantes, São Paulo é um monstro. Eu sentia muita diferença de língua, de hábitos alimentares. Para processar o deslocamento, eu desenhava. No colégio, no meio das aulas, fazia caricaturas. Virou um jeito de fazer amigos.

Você via como uma vocação?

Colegas de escola me dizem: “você desenhava o tempo inteiro”. Queria seguir esse sonho. Mas é difícil, começando a vida, bancar isso, “vou ser ilustrador”. Dá medo. Aí entrei em marketing. Quase me formando, fui fazer estágio em uma firma no centro. Aí pensei: “Não, não é isso que eu quero fazer”, não me vi de terno e gravata. Larguei o curso no sétimo de oito semestres. E fui desenhar.

Já começou com literatura infantil?

Não. Fui ser chargista de jornal, trabalhei um monte de anos com livros didáticos. Tem gente que já começa mais rápido, mas até prefiro que tenha sido gradual. Foi mais interessante ir aprendendo, passar por fases, evoluir.

E como foi a evolução de ilustrador para ser também autor?

Precisei criar coragem. Perdi um pouco de grana, mas tem horas em que você precisa pular do precipício. Estou a dois anos e meio só com livros autorais. Eu que decido de boto mais desenho, mais texto, tenho o controle do processo. E posso contar as histórias que mais me interessam.

E que histórias são essas?

Estou fazendo uma sobre o curto-circuito que dá quando a gente percebe que os pais não são onipotentes. Minha vontade é sempre bater nessa tecla: preparar para o confronto com o mundo real. A crianças vai fazer suas escolhas, mas quero ajudar ela a ler melhor o mundo. Sempre com humor, para deixar a coisa mais leve.

Ser pai de duas meninas mudou seu jeito de ilustrar e contar histórias?

Nem poderia ser diferente. Clarice está com 20 anos, Júlia com 17, ainda são fonte de inspiração. É ótimo também, nos encontros com leitores, ver as coisas em que eles piram. A gente tem que estar sensível para colocar nossas experiências no papel.

Quais seus próximos projetos?

Não sou propriamente um exemplo de autor brasileiro, não tive as referências do folclore e de autores como Monteiro Lobato ou Ziraldo, e isso se reflete em um estilo híbrido, que já chamou atenção lá fora. Há projetos em andamento, mas prefiro não dar detalhes, só depois de confirmado. Buscar o exterior é natural e até necessário para sobreviver. Não somos uma pátria leitora.

Os prêmios não dão uma força?

A gente trabalha de um modo muito solitário e é legal ter um reconhecimento, saber que você está no caminho certo. Mas não é isso que me move. O que me move é fazer literatura de qualidade voltada para as crianças.