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Cartas inéditas de Elizabeth Bishop à namorada são publicadas no Brasil

Ensaio sobre correspondência detalha sua rotina no fim da vida

Elizabeth Bishop
Foto: Divulgação
Elizabeth Bishop Foto: Divulgação

RIO — Elizabeth Bishop (1911-1979) foi uma espécie de Dorival Caymmi da poesia americana. Em seus 68 anos de vida, escreveu apenas 101 poemas, e às vezes levava anos para burilar um verso.

A poeta, no entanto, escrevia cartas. Muitas cartas. Principalmente ao longo dos 20 anos em que viveu no Brasil, com a arquiteta Lota de Macedo Soares (a história de amor das duas foi contada no filme “Flores raras”, de 2013, do diretor Bruno Barreto), longe dos amigos americanos. Enviou uma profusão delas, documentos que, além de revelar muito da trajetória da autora e do seu tempo, também ajudam a entender o país entre os anos de 1951 e 1971, período em que viveu entre Petrópolis, Ouro Preto e Rio de Janeiro. Toda essa correspondência foi reunida em 1976, um catatau de 800 páginas só publicado no Brasil em 2008 (“Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop”, pela Companhia das Letras).

Mas até então não se sabia que ainda havia um bocado de cartas trancadas num baú, num sótão americano. Em 2011, sua biógrafa, a escritora americana Megan Marshall, localizou um lote de nove anos de correspondências inéditas da poeta, guardadas com a viúva da última namorada, a americana Alice Methfessel, 32 anos mais nova, por quem Elizabeth se apaixonou depois que Lota se suicidou. São centenas de missivas e cartões-postais, agora analisados pela primeira vez, num ensaio de Megan a ser publicado na próxima semana pela revista “Serrote”. “As duas namoradas já haviam morrido, mas a história de amor não se perdeu”, escreve Megan no ensaio.

— Quando Alice morreu, em 2009, tinha deixado instruções à parceira, Angela Leap, para enviar um lote de documentos para o Vassar College, onde ficava armazenado o acervo de Elizabeth Bishop desde a sua morte, em 1979. Ninguém mais sabia desses papéis, e ainda levou dois anos para que tudo fosse catalogado e disponibilizado à pesquisa. Em meio àquele material, havia uma caixa diferente, trancada, que Angela não havia aberto. Esse ensaio é a primeira leitura dessas cartas — detalha Megan, que foi aluna de Elizabeth em Harvard, nos anos 1970, e tem um prêmio Pulitzer na estante, de 2014, pela biografia “Margaret Fuller: a new american life”, sobre uma jornalista americana do início do século XIX, defensora dos direitos femininos.

‘DIVISOR DE ÁGUAS’

O ensaio faz parte da biografia “Elizabeth Bishop: a miracle for breakfast”, que acaba de sair nos Estados Unidos, mas ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Nas cartas, escritas entre 1970 e 1976, a pesquisadora observou minúcias da rotina da poeta — Elizabeth tomava longos banhos quentes de banheira enquanto tomava seu bloody mary; fazia uma espécie de “recenseamento” de flores; imitava a forma como Alice se despia, tirando a meia-calça de forma desleixada. Também reiterou os argumentos que a faziam rejeitar as coletâneas de poetas mulheres (“por que não ‘Poetas homens em inglês’? Você não percebe como isso é tolo?”, escreveu ela) e criticou a produção literária americana (a exemplo da poeta Sylvia Plath, a quem se referiu como “insípida” e “superficial”).

— Os poemas contam muito sobre a vida cotidiana de Elizabeth: o pão de milho que ela mesma fazia, a geleia de ameixa colhida no quintal, a paisagem de Ouro Preto que ela tanto amava. E também sobre sua condição emocional enquanto escrevia os poemas que a tornaram a grande escritora que foi. Elizabeth não escondia que estava muito apaixonada. Quando estava longe de Alice, escrevia longas cartas quase diariamente — continua Megan. — Também notei que o seu medo de perder Alice já a acompanhava desde o início do relacionamento. Era o que a fazia beber tanto, mas também escrever poemas tão belos como “A arte de perder”.

As cartas falam essencialmente de paixão. Num dos trechos mais espirituosos, Elizabeth descreve a casa da amada, “o lugar mais eletrificado” que já tinha visto: “toca-dicos hi-fi, rádios (2), TV colorida, secadores de cabelo (2), cobertor elétrico, despertador elétrico, escova de dentes elétrica, além de um forno elétrico e uma geladeira”. E, ao longo das cartas, vai se derretendo completamente: “O pobre coração não envelhece nem um pouco”, escreveu ela, numa carta de 1975.

— Elas foram extremamente felizes. Esse talvez seja um dos aspectos mais delicioso das cartas, ler suas expressões de amor mútuas. Seus estilos eram distintos, Alice e Elizabeth eram de gerações diferentes, mas ambas as vozes são claras e fortes. Havia tristezas, dúvidas e preocupações, mas as cartas nos mostram como as duas mulheres se apoiaram — pondera a biógrafa.

Por esse amor, insegura com a diferença de idade e a distância que por vezes separava as duas, Elizabeth fez birra, revelou pensamentos suicidas, pediu milhões de desculpas por seus porres e até declarou Alice como beneficiária de seus bens (numa das cartas, escreveu que, caso Alice quisesse abrir mão de parte da herança, que considerasse uma doação para a Estação Científica Charles Darwin, nas Ilhas Galápagos). Megan acredita que esse apanhado de correspondências seja a descoberta mais importante da história da poeta:

— Tenho certeza de que sempre haverá muito mais por aprender sobre Bishop e sua obra, mas essas cartas realmente são um divisor de águas no nosso entendimento sobre as dores da sua infância, sua coleção de perdas, que foram a base de tantos dos seus escritos. É difícil imaginar algo tão grandioso acontecendo novamente. Mas certamente esse material iluminará novas interpretações sobre seus poemas, além das que fui capaz de fazer em sua biografia.

LEIA O POEMA 'A ARTE DE PERDER'

A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.