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Biblioteca Parque é ocupada por alunos do Ballet Manguinhos

Projeto vai usar parte da estrutura, fechada desde dezembro, para aulas de dança
Daiana Ferreira, diretora geral do Ballet Manguinhos, posa na entrada da Biblioteca Parque da comunidade Foto: Barbara Lopes / Agência O GLOBO
Daiana Ferreira, diretora geral do Ballet Manguinhos, posa na entrada da Biblioteca Parque da comunidade Foto: Barbara Lopes / Agência O GLOBO

RIO —  “Todos os dias um aluno vinha nos perguntar quando a biblioteca ia reabrir”, conta Daiana Ferreira de Oliveira, diretora-geral do Ballet Manguinhos. O fechamento da Biblioteca Parque de Manguinhos por falta de verbas, em dezembro do ano passado, pegou de surpresa os alunos do projeto, que desde 2012 usa a unidade como residência artística para ensinar dança a crianças e adolescentes da comunidade da Zona Norte. Mantidas graças a 20 apoiadores e patrocinadores, as atividades poderiam seguir por um tempo em espaços menores, como a Casa de Trabalhadores de Manguinhos. Mas lá não há lugar suficiente para os seus 211 alunos, que devem voltar às aulas nesta segunda-feira.

— A estrutura que temos na biblioteca não temos em outros locais — lamentou Daiana. — E nossos fundamentos desde sempre são dança e leitura. Nos últimos anos nossa casa foi a biblioteca: aulas, ensaios, espetáculos... Para nós é importante manter essa visão de cultura no território. E a apropriação dele. Nossa base é lá.

Com 28 anos de idade, Daiana de Oliveira foi nascida e criada em Manguinhos, em uma casa “onde não havia banheiro, mas havia livros”. O primeiro que leu, “O caso da borboleta Atiria”, de Lúcia Machado de Almeida, foi transformado em um espetáculo do Ballet Manguinhos. Desde 2012, ela atendeu mais de 2 mil jovens; muitas leram um livro pela primeira vez graças ao projeto.

O abandono da biblioteca, que além de leitura e acesso a informática oferecia atividades como sarau de poesia, laboratório editorial e coral para idosos, preocupa Daiana. No momento, apenas dois seguranças guardam o prédio, que compõe, junto à Casa da Mulher e à escola estadual Luiz Carlos da Vila, o chamado “Centro Cívico” de Manguinhos. O medo é que as instalações sejam invadidas e sucateadas, como aconteceu com a Casa da Mulher, também fechada em 2016.

Cansadas de esperar por uma resposta da Secretaria estadual de Cultura, que ainda não estabeleceu um prazo para a reabertura, Daiana e um grupo de funcionários e voluntários começaram uma ocupação parcial do espaço na última terça. Às 15h, o prédio foi reaberto, mas somente no entorno da recepção e no hall do Cineteatro Eduardo Coutinho, que permanece fechado. A Superintendência da Leitura e do Conhecimento liberou a ocupação, mas apenas para atividades de dança e teatro. Por enquanto, os frequentadores não têm acesso aos computadores e aos livros do acervo. O próximo passo, segundo Daiana, é conseguir permissão para a leitura no local.

Em apenas alguns minutos treinando no chão, os uniformas ficam tomados pela sujeira Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Em apenas alguns minutos treinando no chão, os uniformas ficam tomados pela sujeira Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Enquanto uma segurança vigiava a sala de leitura, Daiana e as mães de alunos do Ballet Manguinhos faziam um mutirão de limpeza, e 12 jovens bailarinas se exercitavam no chão da recepção sob a orientação da instrutora Liliane Moreira. Em poucos minutos, seus uniformes já estavam tomados pela poeira acumulada nas últimas semanas.

Mãe de uma das alunas do Ballet, a professora de educação física Ilza Pereira Silva participou da limpeza — uma forma, segundo ela, “de lutar pelo único lugar realmente pacificado da comunidade”.

— Aqui todos convivem democraticamente — explicou Ilza, enquanto ajudava a varrer o hall. Ela disse que se emociona só de lembrar dos espetáculos nos quais sua filha se apresentou com o projeto.

— É a primeira bailarina da família. Ninguém podia antes porque era uma atividade de elite. Ela realizou um sonho de gerações.

O jovem Luiz Felipe Moreira, de 15 anos, é uma cria da biblioteca-parque. Até pouco, era um aluno problema, que colecionava suspensões na escola. Seu comportamento mudou quando ele entrou no Ballet Manguinhos em 2015. Desde então, vem ganhando prêmios em concursos nacionais; recentemente, ingressou como bolsista no Centro de Dança Rio, do Méier.

— Ao ouvir falar que a biblioteca tem que fechar, a comunidade não conseguiu ficar sem fazer nada — disse ele. — Sem a biblioteca, é uma comunidade morta.

Foi ao assistir a um espetáculo do Ballet Manguinhos no cineteatro da biblioteca que Moreira passou a se interessar pelo balé. Trata-se do único palco de Manguinhos e, portanto, o único espaço em que os alunos podem se apresentar para os seus pais e para a comunidade.

A instrututora Liliane Moreira e suas alunas no hall do Cine Teatro Eduardo Coutinho Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
A instrututora Liliane Moreira e suas alunas no hall do Cine Teatro Eduardo Coutinho Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

No ano passado, muitos moradores não conseguiram se deslocar até o Teatro Miguel Falabella, no Norte Shopping, quando os jovens apresentaram o espetáculo “Andanças de Elis” por duas noites seguidas. E muitos também não poderão vê-los, no próximo dia 12 de março, estrearem “O caso da borbleta Atiria” no João Caetano.

— Todo ano apresentamos 5 sessões em três dias seguidos no cineteatro — lembra Daiana. — São apenas 202 lugares, por isso tantas apresentações. Só na Biblioteca temos a junção de todas as coisas que a favela não tem acesso.

Voluntária na biblioteca desde a sua abertura e um das funcionárias ajudando na ocupação, Maura Santiago acompanhou de perto a transformação de Luiz Felipe. Para ela, é impossível mensurar o tamanho

— Quando a BP foi aberta, em 2010, muitos criticaram, disseram que viraria uma grande lan house...— lembra Maura. — Mas, quando fechou, os jovens estavam interessados em saber o que ia acontecer com os livros, não com os computadores. E, nesses seis anos, nunca houve um único ato de vandalismo, um único vidro quebrado.

Só no ano passado, a Biblioteca-Parque de Manguinhos recebeu quase 130 mil pessoas, num local onde a população é de 21.846 habitantes, segundo o Censo de 2010. Não por acaso seu fechamento teve um impacto moral na comunidade, acredita Maura.

— É triste vê-los indo até o espaço e darem de cara com a porta fechada. Você vê que falta alguma coisa — diz. — O adolescente já tem idade para entender o processo, ele tem a esperança de que há toda uma questão política que pode ser resolvida. Mas a criança não faz essa leitura. Com a reabertura parcial estamos tentando dar um acolhimento, para ele entender que isso é só um momento, que a biblioteca pode, sim, reabrir.

O Estado do Rio tem quatro bibliotecas-parque, e apenas a de Niterói voltou a funcionar depois do recesso de fim de ano, no último dia 30 de dezembro. Mais de 150 funcionários foram desligados, depois que o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG) anunciou que deixaria a administração das unidades ao governo.

Em nota, a Secretaria Estadual de Cultura esclareceu que continuará com a gestão, embora haja a possibilidade de contratar um substituto ao IDG para administrar o dia a dia dos espaços, “como foi feito recentemente em Niterói, onde o Instituto Tear assumiu a administração da biblioteca e readmitiu 90% do pessoal que já trabalhava ali e havia sido dispensado em razão do fim do contrato com o IDG”. “Retomadas as atividades, a ideia é dar prosseguimento normal ao trabalho que vem sendo feito nos últimos anos”.