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Os disfarces de João Ubaldo Ribeiro, personagem de si mesmo

Em livro, Juva Batella articula vida e obra do baiano e revela sua relação com o tio escritor
O escritor João Ubaldo Ribeiro Foto: Leo Aversa
O escritor João Ubaldo Ribeiro Foto: Leo Aversa

RIO - “Quais são as etapas de seu trabalho até chegar ao texto definitivo?”, pergunta o sobrinho jornalista Juva Batella ao tio João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), num e-mail enviado entre 2002 e 2003. O baiano responde: “Bolação (caótica e errática), título, dedicatória, epígrafe e texto.” A resposta, dada como parte do “Questionário Proust” que Batella fez ao tio, ilustra a falta de paciência do escritor para teorizações sobre sua obra e mostra que ele provavelmente reprovaria algumas teses de “Ubaldo: ficção, confissão, disfarce e retrato” (Vieira & Lent). O livro, que tem como base a tese de doutorado do jornalista em Literatura Brasileira na PUC-Rio defendida em 2006, traz e-mails e cartas trocados entre os dois, o questionário e ilustrações de Chica Batella, filha de Ubaldo.

Na obra, Batella articula os livros do tio com a sua trajetória, numa “biografia fantasmagórica” formada apenas de diálogos entre ele, o autor, e um interlocutor sem nome que, assim como Ubaldo, detestava teorizações literárias.

“Ubaldo está ali se disfarçando como personagem. A obra dele era muito autobiográfica, de forma muito discreta, mesmo sem que ele quisesse.”

Juva Batella
Jornalista e autor de tese sobre o seu tio João Ubaldo Ribeiro

— Uma biografia mesmo seria muito mais complexa. Eu traço uma biografia um bocado fantasmagórica, que vai pelos meandros dos personagens dele. Como se ele fosse me dando pistas — explica Batella. — Em vários momentos, você vê uma declaração dele, vê uma declaração do personagem, e são muito parecidas. É essa a ideia da confissão, da ficção, do disfarce. Ubaldo está ali se disfarçando como personagem. A obra dele era muito autobiográfica, de forma muito discreta, mesmo sem que ele quisesse.

Para montar esse quebra-cabeça, o jornalista não se prende à ordem cronológica dos romances, começando por “Sargento Getúlio”, de 1971, e não “Setembro não tem sentido”, de 1968. Batella vê no sargento ecos da infância de Ubaldo em Aracaju, onde viveu até os 11 anos de idade. Seu pai era um líder político e foi secretário de segurança de Sergipe. Sargentos, como o Getúlio do livro, frequentavam a casa do pequeno Ubaldo, que ouvia atento as suas histórias, e povoaram sua imaginação.

Mas a infância do escritor não foi feita só de sargentos. O pai de Ubaldo tinha uma rica biblioteca, onde o escritor fez sua formação literária. Antes dos 12 anos, ele já tinha lido quase tudo de Shakespeare, Homero, Montaigne, Machado de Assis, José de Alencar, entre muitos outros, “com efeitos às vezes surpreendentes”, confessou o próprio Ubaldo no livro “Um brasileiro em Berlim”.

— No “Sargento Getúlio”, há o monólogo de “Hamlet”. De uma forma muito legal, João vai deturpando as palavras para reproduzir mais ou menos o modelo original de Shakespeare — diz o jornalista.

Já “Setembro não tem sentido” Batella vê como um típico romance de juventude, à la “Retrato do artista quando jovem”, de James Joyce. Orlando, o protagonista, é o disfarce do Ubaldo jovem em Salvador, um entre outros “intelectuais na porta da livraria tentando salvar o Brasil”. Glauber Rocha fazia parte dessa turma e foi, inclusive, figura fundamental para a publicação da obra.

Capa do livro "Ubaldo" de Juva Batella Foto: Divulgação
Capa do livro "Ubaldo" de Juva Batella Foto: Divulgação

O aclamado “Viva o povo brasileiro”, de 1984, marca uma ampliação do campo de interesses de Ubaldo — como um leque que vai se abrindo, na imagem elaborada pelo jornalista na sua tese —, que vinha desde o início da sua obra e dera mais um passo adiante no romance “Vila Real”, de 1979. Ao contar a história de uma “almazinha” que atravessava séculos de história, o ilhéu de Itaparica falava do Brasil, mas ele próprio não admitia isso.

— O João fica naquele nhenhenhém de que está falando do povo do recôncavo baiano, basta olhar para o livro que estamos vendo representações do povo brasileiro — afirma Batella.

O jornalista conta que tinha uma relação quase obsessiva com o tio, casado com Berenice, irmã da sua mãe. No livro, ele preferiu excluir a sua parte na correspondência e colocou notas de rodapé para facilitar a leitura. Os textos revelam um autor bem-humorado na sua intimidade, que recomendava ao sobrinho que desistisse de ser escritor, fugia de comparações com outros escritores, como Guimarães Rosa, e até mandava áudios em MP3 porque estava sem paciência para escrever. Um usuário avant la lettre dos áudios do WhatsApp:

— Desde que conheci o João, ele era muito fascinante. Ele contava muitas histórias, era um cara muito engraçado, tinha uma voz pitoresca. Ele se tornou, para mim, o ideal de escritor e intelectual. Um ilhéu excêntrico que vivia de literatura.