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Surrealista que desafiou convenções, Claude Cahun é lançada no Brasil 62 anos após sua morte

Autora usou androginia como ponto de partida para questionar pressupostos identitários
Embora se considerasse escritora acima de tudo, Claude Cahun é hoje mais conhecida por suas fotografias Foto: Claude Cahun / Divulgação
Embora se considerasse escritora acima de tudo, Claude Cahun é hoje mais conhecida por suas fotografias Foto: Claude Cahun / Divulgação

RIO —  “Neutro é o único gênero que me convém.” Assim se definia Lucy Schwob, ou melhor, Claude Cahun — pseudônimo de gênero indeterminado da artista francesa que desafiou as convenções sociais da primeira metade do século XX. Escritora do movimento surrealista, fotógrafa, narcisa, militante política e integrante da resistência francesa, deixou uma obra inovadora e provocativa, que usa a androginia como ponto de partida para questionar os pressupostos identitários. Publicado agora pela Bolha Editora, mais de 90 anos após o lançamento original, seu livro “Heroínas” traz 16 contos sobre míticas figuras femininas, que reinterpretam modelos e imagens pré-concebidas do papel da mulher.

Por sua independência e liberdade, a própria Claude Cahun já foi descrita como uma “mutante heroica”. Jovem de boa família — filha do editor Maurice Schwob e sobrinha do escritor simbolista Marcel Schwob —, rejeitou corajosamente as regras para viver na transversal. Lésbica assumida, foi presa pelos nazistas na Segunda Guerra e escapou de ser executada por milagre. Esquecida depois de sua morte — teve uma parada cardíaca em 1954 —, acabou se tornando uma espécie de ícone queer ao ser redescoberta no fim dos anos 1980. Mesmo assim, ainda não tinha obras publicadas no Brasil.

— O trabalho de Claude Cahun se esquiva de toda categoria e desafia construções de linguagem, desafia entendimentos de uma geografia de corpo que por muito tempo se pensou definitiva — explica a editora Rachel Araújo, fundadora da Bolha. — Ela expõe justamente a fraqueza de construções de gênero e poder, reduzindo-as a meras fantasias. Portanto, esse esquecimento, ao meu ver, serve também como exemplo dessas fronteiras artificiais que gostamos de erguer contra seres e coisas, e que acabam por criar condições para uma espécie de miopia coletiva.

Como muitas outras redescobertas literárias, a de Claude se deu por acaso. Décadas depois da morte da autora, o poeta François Leperlier quis saber mais sobre sua obra e colocou um anúncio num jornal pedindo que qualquer pessoa que a tivesse conhecido entrasse em contato com ele. Foi então que recebeu uma carta de John Wakeham, que em 1972 havia comprado uma série de relíquias do espólio de Claude vendidas na casa da viúva dela, Marcel Moore (pseudônimo de Suzanne Malherbe).

Leperlier é figura fundamental na exumação do trabalho de Claude. Além de escrever livros sobre a artista, ele organizou exposições de seu trabalho fotográfico, que, na onda da cultura andrógina dos anos 1980 e da explosão queer dos 1990, ajudaram a popularizar a obra dela. Em seus autorretratos, Claude cria duplos de si mesma com a ajuda de espelhos e brinca com a sua própria imagem: raspa o cabelo, traveste-se, encarna um halterofilista ou um dândi sensual. Em outras imagens, sugere jogos sadomasoquistas com sua companheira.

Capa do livro "Heroínas", de Claude Cahun Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
Capa do livro "Heroínas", de Claude Cahun Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

Mesmo sendo hoje mais conhecida por suas fotos, Claude se considerava, antes de tudo, uma escritora. Sua obra literária é composta por cinco livros, incluindo prosa poética (“Vues et visions”) e uma autobiografia (“Aveux non avenus”). “Heroínas” se inspira no “Vies imaginaires”, de seu tio Marcel Schwob, que reúne perfis de figuras célebres ou desconhecidas da Antiguidade. Segundo a escritora Nathanaël, que assina o prefácio, “o aspecto essencial da obra de Cahun é sua escrita”. Para Rachel, porém, ambas movimentações são, de certo modo, indissociáveis:

— Embora seu trabalho fotográfico tenha sido uma criação para si mesma e para Marcel Moore, e não para o consumo público, a atuação de Claude na escrita e na fotografia vai de encontro a um “eu” que é sempre múltiplo, e não duplo no sentido feminino-masculino, homem-mulher.

Entre jogos de espelho e autoficção, as experiências radicais de Claude fizeram eco em ânsias próprias do início do século XX e agora voltam à tona colocando em cena a ambiguidade sexual e o constante redesenho de si mesmo. Para Rachel, porém, o convite à ruptura de construções sociais sempre será relevante, seja em 1925 ou 2016.

— Talvez hoje mais do que nunca, num mundo saturado por construções sociais infelizes, um trabalho como o de Cahun possa de alguma forma contribuir para desestabilizar as estruturas que inventamos e damos como verdade — observa a editora. — Nós precisamos urgentemente nos reinventar.

“Heroínas”

Claude Cahun

Contos

A Bolha Editora,148 páginas

(Tradução:  Daniel Lühmann)

R$ 35