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Escritor mineiro entra na cabeça de loucos históricos

Premiado por "Antiterapias", Jacques Fux busca paralelos entre escárnio judaico e a piração contemporânea
Jacques Fux: loucura hoje está em não olhar para o outro Foto: Divulgação / Divulgação
Jacques Fux: loucura hoje está em não olhar para o outro Foto: Divulgação / Divulgação

RIO — Quando analisada fora do âmbito da psiquiatria ou mesmo da psicanálise, a loucura, livre dos grilhões da ciência, é um estado mental e sociocultural muito mais comum e “generoso” do que se imagina, e independe de um diagnóstico médico. Partindo da meshugá — termo que designa a loucura judaica dentro do próprio imaginário do povo de Moisés, e todas as crenças e falácias que vêm junto —, o mineiro e judeu Jacques Fux, de 39 anos (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013 pelo livro “Antiterapias”) reúne, em novo trabalho, uma galeria de personagens vistos como loucos. Não pela obra que legaram, em geral grandiosa, mas por suas condutas na vida pessoal. Em vez de julgá-los ou simplesmente juntar obra e relatos, Fux, numa mistura de biografia, ficção e exercício pseudoterapêutico, desgarra-se de si próprio para “entrar” na cabeça dessas torturadas figuras da História. Nesse trem de loucos reunidos em “Meshugá — Um romance sobre a loucura” (Editora José Olympio) viajam figuras como Woody Allen com os motivos mais íntimos de sua escandalosa vida familiar; Bobby Fischer, o gênio americano do xadrez, com a gênese ancestral de sua paranoia furiosa; as torturas psicológicas sofridas por Ron Jeremy, o judeu baixinho, barrigudo e narigudo que revolucionou a indústria pornô com seu falo gigantesco e infalível, e o paradoxo de sua solidão; a pensadora Sarah Kofman com a memória de suas duas mães; entre outros judeus e judias que viveram num limbo que, embora pareça consagrado a um só povo, é o limbo em que vive todo ser em sua busca de pertencimento. Estudioso de matemática, esportes e literatura, meio discípulo do Portnoy de Philip Roth (um de seus livros se chama “Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor”) e viajante compulsivo, Fux mostra um pouco de seu rebuliço intelectual nesta entrevista, em que especula sobre o caráter da loucura contemporânea: um mundo em que o outro é cada vez mais o louco que o eu tem em si, e teme encarar.  Isso na era em que se deveria estar celebrando o triunfo da razão.

O mundo chegou ao ápice de sua loucura, ou já foi mais louco?

Se o critério forem as atrocidades já cometidas historicamente, acho que já estivemos pior. Mas, do ponto de vista da mentalidade das pessoas, chegamos a um grau de loucura inédito, que é o da não aceitação de nada. De um maniqueísmo total. Só há dois lados. Ou você está de um, ou do outro. E o outro está sempre errado. A esta altura, não era de se esperar que a cabeça das pessoas estivesse assim.

O que era de se esperar? Uma redenção da loucura histórica?

Com toda a suposta evolução da razão, eu esperaria um momento com visões mais reflexivas, de mentes cientes de que há várias faces, e não só duas. Talvez a loucura contemporânea seja caracterizada pela incapacidade de analisar a multiplicidade.

O que leva a esse mundo bipolar?

Relendo os gregos, essa coisa de voltar para o eu. Todo mundo olhando para si próprio, tentando lidar com as próprias angústias e as próprias brigas, e esquecendo de olhar para o outro. O outro é cada vez mais um estrangeiro, e, cada vez mais, o estrangeiro é uma figura que nos afronta, que vem buscar nosso trabalho, tirar nosso lugar.

Por outro lado, a gente, hoje, vive espiando o outro...

Sim, sobretudo através das redes sociais. Mas as redes camuflam o outro. É um outro muito feliz, muitíssimo completo. Aí, você olha esse outro, olha para si, com suas lacunas e seu sofrimento, e isso gera um auto-ódio, um movimento de você ser incapaz de conviver com seu próprio corpo.

Você passa a ser estrangeiro de si...

Isso é, sem dúvida, um tipo novo de loucura que se espalha. Além disso, o Google e outros grandes provedores usam algoritmos que fazem suas buscas, e as respostas que você procura, sempre voltadas para o que você já espera. Se você é de direita, suas pesquisas serão de direita. Isso impede você de sair de si, de refletir. Num lugar que teoricamente seria democrático — a internet — a diferença acaba sendo suprimida. Se você é Freixo, quem é Crivella termina bloqueado, como pessoa, como amigo, como ser. Como abrir as cabeças assim?

De perto ninguém é normal?

Todo mundo tem as suas excentricidades. Quando você não as entende, você tacha isso de louco. No meu novo livro, o narrador acha que Woody Allen, Bobby Fishcer, Otto Weininger, Sarah Kofman, e outras figuras controversas são loucos. Mas quando entra na cabeça desses personagens, ele consegue perceber, “ouvir” uma coisa que em geral não ouve. Que a gente ridiculariza: o diferente. A loucura contemporânea é que ninguém está diferenciando o outro. Então, muitas vezes, o louco que a gente vê no outro é o outro em cada um.

Fora das linhas científicas ou da psiquiatria, que não abrangem tudo, como dizer se alguém é louco, ou não?

Eu diria que, se você tem certeza de que é louco, em geral não é. Mas quando você tem certeza de que os outros são loucos, aí sim, o louco tende a ser você. Como em “O alienista”, de Machado de Assis. Há aquele encontro de Borges consigo próprio, em “O outro” , em que ele tem que construir um argumento lógico para dizer que está na realidade. Ou o mito platônico presente em “Alice no país dos espelhos”, sobre a sanidade estar em diferenciar a vigília do sono. Além disso, ao criar uma imagem do outro como louco, de alguma forma você está resvalando na possibilidade da loucura.

De onde, ou quando, vem a gênese da loucura?

Eu pensaria isso: no primeiro momento a história da loucura vem do risível, do caricato, do sujeito que comete atos fora do senso comum, da lógica. Mas se você se aproximar muito dele, é capaz de se encontrar, daí o escárnio.

No novo filme de Terrence Malick, há o momento em que o homo sapiens se vê pela primeira vez no espelho de um rio de águas agitadas, um rosto torto, móvel. Ele se assusta em vez de se embevecer, como Narciso. A loucura não nasce aí?

Sem dúvida, ela passa por aí. O personagem que vai olhar para ele mesmo. Ao entender seu lugar no mundo, a questão humana, da vida, ele vai se perguntar: o que é isso? A resposta é: isso é o vazio. O nada. Então, ele se refugia em vários ídolos, mitos, religiões, a própria ciência, o radicalismo. Por isso, as pessoas que só reproduzem o conhecimento têm uma vida mais fácil. Já quem olha muito para si nesse rio de águas móveis pode vivenciar um espanto insuportável.

Você fala muito de um lado sombrio do humor. Em geral, pensamos que ele é libertador, positivo...

O humor historicamente é uma forma de você criticar, de rir de si próprio, mas é uma forma também preconceituosa de oprimir, de excluir, e de fazer as pessoas se autodepreciarem, o que ocorre muito com povos como o judeu. É aquele riso cheio de lágrimas. O atual livro, achei que ia ser lúdico, leve, como os anteriores, mas ao chegar perto demais do “riso”, você vê que a coisa não é assim tão engraçada.

Você sofreu mesmo, como diz no primeiro capítulo, ao entrar na mente das figuras que retrata?

Tem muita pesquisa, eu venho estudando isso há muito tempo, venho colecionando loucos judeus, que vêm caminhando junto comigo ao longo do seu caminho. É um corte judaico, mas eu o uso para simbolizar o universal — pessoas que sofrem um bullying cultural estão por toda a parte. Minorias que acabam introjetando essas questões, o olhar do outro sobre si, e sentem-se, sempre, estrangeiras.

Inclusive indivíduos isolados...

Buscando pertencer. Clarice Lispector, por exemplo, que não está no livro, é uma imigrante que vive buscando esse pertencimento. O judeu, em sua diáspora, quis pertencer à História e a história foi dando porrada na sua cara dizendo: não tem jeito. E essa é a busca humana: a de ser aceito. É cada vez mais difícil conseguir.

Somos todos judeus?

Somos todos muito estranhos.

A loucura é banal, como o mal de Hannah Arendt?

Ela não é banal. De longe a loucura parece banal. Mas dentro ela é muito complexa. Não é à toa que a própria Hannah Harendt levante esse ponto. É uma questão muito mal resolvida para ela mesma. E ela não viveu de perto o mal que analisou.

A loucura é também vista com admiração. Como algo rico, criador.

Os loucos do livro também foram gênios. Bobby Fischer viu possibilidades no xadrez que ninguém viu. Ron Jeremy fez nascer uma luz na indústria pornô, apesar de sua figura ridícula, baixinho, feio, narigudo, com o enorme falo. Se você vê de longe, Arthur Bispo do Rosário é só gênio e luz, mas vai entrar nele... é outra coisa. De longe é engraçado o cara sair pelado na rua e tocar piano pra caramba. De longe o gênio matemático com sua mochila é magnífico, mas tem que fazer o café dele, dar banho... Clarice sofria muito com seu olhar profundo sobre as questões humanas. Mas imagina viver com ela.

Você é louco?

Acho que eu sou. Minha loucura é uma angústia, uma insatisfação, uma pulsão estrangeira. Morei em vários lugares estudando coisas diferentes, nunca acho meu lugar, sou insatisfeito com a literatura e busco mais, quero mais. O gênio me fascina, e os gênios do esporte e da literatura, em especial.

Você é um gênio?

Não! Por isso corro tanto atrás. Estou ciente dessa limitação completa e total...

Limitação “completa e total”... Isso é meio louco...

Talvez todos, gênios ou não, se você entrar na cabeça deles, terão uma forte consciência de que são medíocres.