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Livros com protagonistas gays apontam para naturalização do tema

Recém-lançados por grandes editoras, romances levam homossexualidade para além dos nichos editoriais
Samir Machado de Machado, autor de "Homens elegantes": protagonista gay em um livro de ação e aventura Foto: Frederico Cabral / Divulgação
Samir Machado de Machado, autor de "Homens elegantes": protagonista gay em um livro de ação e aventura Foto: Frederico Cabral / Divulgação

RIO —  Em pleno século XVIII, um tenente luso-brasileiro é enviado a Londres para investigar o mistério em torno de um livro inglês obsceno contrabandeado em massa no Brasil. A premissa do recém-lançado “Homens elegantes” (Rocco, 576 páginas, R$ 54,90), novo romance do gaúcho Samir Machado de Machado, traz tudo que um bom livro de aventura exige: trama instigante, contexto histórico e cenas de ação — incluindo duelos de espada. Mas a obra também traz um elemento incomum para o gênero: um herói gay, cujo par romântico é um padeiro e cujo principal inimigo se chama Conde Bolsonaro — óbvia alusão a um polêmico político brasileiro, muito criticado pelos movimentos LGBT.

Mesmo usando esses ingredientes, “Homens elegantes” não é vendido como uma “publicação gay” nem se volta para um nicho específico. Ao contrário. O tema surge naturalmente em uma história escrita para um público amplo e irrestrito. Seu lançamento, aliás, se dá no mesmo semestre em que a Companhia das Letras coloca no mercado quatro romances com protagonistas gays: “Simpatia pelo demônio”, de Bernardo Carvalho; “O amor dos homens avulsos”, de Victor Heringer; “Meia-noite e vinte”, de Daniel Galera; e “O tribunal de quinta-feira”, de Michel Laub. Os três primeiros já saíram, e o último está previsto para o próximo mês. Com exceção de Bernardo Carvalho, todos os autores escrevem sobre a homossexualidade pela primeira vez e, apesar de muitos deles serem geralmente associados a um universo hétero, tentam abordar o tema com o maior desembaraço possível.

A profusão de personagens gays na literatura mainstream brasileira, protagonizando livros que escapam de nichos e rótulos, seria um sinal de que o universo LGBT está se tornando algo natural em nossa produção? Para Machado, a chegada quase simultânea desses livros ao mercado não é uma mera coincidência.

— A saída do nicho talvez esteja ligada ao momento, com uma geração mais nova, a dos millenials, que não tem problemas com o tema e quer consumi-lo; e uma geração mais velha, que cresceu numa realidade onde isso era quase um não assunto, e agora talvez tenha maturidade para discutir o tema sem recorrer a códigos ou sensacionalismos moralistas — avalia o autor, que no mês passado ministrou uma oficina de introdução à literatura gay e ficou surpreso com o ecletismo dos seus alunos.

Até pouco tempo atrás, quem escrevesse sobre homossexualidade corria o risco de ter sua obra reduzida à etiqueta de “literatura gay”. Um rótulo que, segundo Machado, perde cada vez mais sentido nos dias atuais. A ideia de pôr um herói gay em seu livro, conta Machado, surgiu como uma resposta a uma cena do romance “As horas”, de Michael Cunningham, onde um ator e um produtor de cinema discutem se o público estaria preparado para aceitar um filme de ação com um protagonista homossexual. Interessava-lhe, portanto, explorar esse tipo de experiência dentro dos códigos específicos de um romance de aventura.

— Em Londres, encontrei uma prateleira de “literatura gay” e tinha lá William Burroughs, Christopher Isherwood e mais um monte de notórios autores homossexuais. Mais, adiante, achei outras prateleiras com livros de “ficção histórica gay”, “literatura policial gay”, assim se subdividindo ao infinito — conta. — Os mesmos livros poderiam estar em qualquer outra prateleira. É só um rearranjo específico, comercial.

“Talvez a nova literatura brasileira esteja se encaminhando para outra apresentação da trama e do personagem homossexual”

Silviano Santiago
Crítico e escritor

Amigo de Machado, Daniel Galera assina a orelha de “Homens elegantes” e também acaba de criar, pela primeira vez, um personagem gay. Ele explica que seu Emiliano, de “Meia-noite e vinte” (lançado em setembro), é um tipo de homossexual “pouco representado em livros e no cinema”. Longe do clichê do gay afeminado, surgiu de anos de reflexão acerca do “significado de virilidade”.

— Em minha adolescência, era impensável associar o conceito de virilidade a um homem homossexual. Hoje eu entendo como ela é uma característica que transita livremente entre sexos e orientações sexuais — explica Galera. — Não resolvi do nada fazer um personagem que fosse homossexual. A percepção da minha geração de como se posicionar em relação a isso mudou muito dos anos 1990 para cá.

O autor acredita que, embora o preconceito contra os homossexuais e outras minorias ainda seja um problema, alguns passos foram dados no sentido de uma naturalização do assunto, pelo menos na literatura.

— Já se pode escrever um personagem assim um pouco mais à vontade, tratar do tema da homossexualidade como uma coisa comum, sem querer provar alguma tese, sem representar um grupo de pessoas de uma forma artificial — opina Galera.

Victor Heringer: "Entrar no mundo do outro é um modo de amar, é um dos papéis da ficção" Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
Victor Heringer: "Entrar no mundo do outro é um modo de amar, é um dos papéis da ficção" Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

Editora na Rocco, que publica o livro de Samir Machado, Vivian Wyler não tem dúvidas: a escolha da temática homossexual e sua abordagem por um escritor que não partilha, necessariamente, da opção sexual de seu personagem é, sim, um reflexo da aceitação do tema pelo mainstream e pelo público. Ela lembra que, há alguns anos, as editoras ainda falavam em “literatura de nicho” e em usar selos exclusivos. Livros como “A cidade e o pilar”, de Gore Vidal, ou “Maurice”, de E.M. Forster, vendiam bem, mas “sua chancela para a estante geral era a delicadeza da abordagem, mais sensível que explícita, mais insinuada”.

—  A voz corrente era: o livro é bom, e por isso será aceito, apesar do elemento gay, considerado uma espécie de contrapeso, de contrabando de conteúdo — diz Vivian. — Para uma obra radical como a de Jane Bowles ou Radcliffe Hall ou Jean Genet,  ou mesmo Manuel Puig, havia 100 outras em que o elemento gay era uma pitada, um chiste, no máximo uma perversão, como na série vampiresca de Anne Rice. O que mudou foi que agora todo mundo quer ler o livro, mesmo já sabendo que é LGBT. E já sabendo que vale a experiência, não mais interdita ou furtiva.

Autor de ensaios sobre a representação gay na literatura brasileira, o crítico Silviano Santiago acredita que a homossexualidade não se normaliza. É o "olhar e a mente das pessoas que podem mudar". Ele cita um neologismo que apareceu recentemente em um artigo do “New York Times”: bromosexual. O termo indica uma nova tendência, a da conexão fraternal entre homens gays e héteros, com a possibilidade de criar vínculos de amizade apesar dos interesses sexuais distintos. Algo raro até dez anos atrás.

— Estaríamos diante de um novo paradigma no relacionamento entre homo e hétero? — indaga o crítico. — Talvez a nova literatura brasileira esteja se encaminhando para outra apresentação da trama e do personagem homossexual. O rapaz ou o senhor gay já não se sente mais inibido no seu desejo por uma vida social e política mais plena do que a demarcada de modo estreito pelo preconceito e pelo medo.

Autor de “O amor dos homens avulsos”, lançado em agosto, Victor Heringer fez questão de que a história de amor de seu romance fosse entre dois meninos. Segundo ele, mesmo os ficcionistas ligados a uma masculinidade mais tradicional estão começando a experimentar uma maior alteridade na escrita. O que pode em breve provocar um debate complexo sobre o lugar de fala.

— Embora não haja assunto interditado, ainda existe um problema de representatividade no meio literário — diz Heringer. — Entrar no mundo do outro é um modo de amar, é um dos papéis da ficção. Mas a crítica que se poderia fazer a mim, escritor branco, semi-heterossexual e de classe média, que se coloca no lugar de fala de grupos oprimidos, tem sua validade. Às vezes, normalizar é também um modo de calar. Afinal, foram homens que, há séculos, vinham escrevendo sobre “a alma feminina”. É contra essa normalização que eu tenho que lutar.

Colaborou Silvio Essinger