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Com segredo a perigo, Elena Ferrante tem várias obras lançadas no Brasil

Novo volume da tetralogia napolitana e obras antigas da autora anônima chegam às livrarias

Ísquia: praia italiana é um dos cenários do segundo volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante
Foto: Reprodução
Ísquia: praia italiana é um dos cenários do segundo volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante Foto: Reprodução

RIO — Enquanto Elena Ferrante faz o possível para se manter à sombra, seu nome dá cada vez mais as caras por aqui. Ao longo dessa semana, as redes sociais e a imprensa internacional debateram intensamente os resultados de uma reportagem da revista “The New York Review of Books” , publicada no último domingo, que apresentou indícios sólidos de que a escritora seria, na verdade, a tradutora Anita Raja, de 63 anos, responsável pela versão de obras de Franz Kafka para o italiano. Se confirmada, a revelação colocaria fim ao mistério de 25 anos sobre a identidade de uma das mais bem-sucedidas e apreciadas autoras da atualidade, que vendeu quase 2,5 milhões de livros sem nunca ter mostrado o rosto.

Em meio à polêmica gerada pela investigação, três novas obras da autora chegam às livrarias brasileiras. Depois do sucesso dos dois primeiros livros de sua tetralogia napolitana (“A amiga genial” e “História do novo sobrenome”), a Biblioteca Azul (também responsável pela edição do romance “Dias de abandono”) lança em novembro o aguardado terceiro volume da saga, “História de quem foge e de quem fica”. Já a Intrínseca resgata duas publicações antigas de Ferrante, inéditas por aqui: na próxima semana saem “A filha perdida” (2006), romance sobre os sentimentos conflitantes de uma professora de meia-idade, visto como um divisor de águas na carreira da autora, e “Uma noite na praia”, sua estreia na literatura infantil.

Em 2017, a Intrínseca lança ainda ‘‘L’amore molesto”, romance sobre uma mulher que investiga a história de sua família, e prepara “La frantumaglia”, compilação de cartas, crônicas e ensaios em que a escritora expõe seu processo de criação e, ironicamente, os motivos para ficar no anonimato. Com isso, todo o catálogo de Ferrante estará disponível no país.

Se a popularidade da autora já vinha crescendo no Brasil desde que sua obra foi introduzida, em 2015, a suposta descoberta de sua identidade promoveu um buzz involuntário, porém oportuno, para a divulgação dos livros. Pelo menos nos EUA, as vendas aumentaram. Na segunda-feira, um dia após à publicação da reportagem,  dois dos livros de Ferrante apareceram na lista “Movers and shakers”, que inclui aqueles com maior crescimento em 24 horas na Amazon.com.

— Por coincidência, o lançamento acabou alinhado com esse burburinho todo, um golpe de sorte em termos comerciais — explica Danielle Machado, editora de títulos internacionais da Intrínseca.

Segundo ela, o caso “atiça” a curiosidade dos leitores e pode ajudar a esgotar a (alta) tiragem inicial de 20 mil exemplares de “A filha perdida” — até hoje, Ferrante vendeu 47 mil livros no Brasil:

— Todo mundo está prestando atenção nessa história, se perguntando que pessoa é essa e por que se quer tanto saber quem ela é. Mas o mercado editorial está com o coração partido. Foi um absurdo investigarem a vida dela assim.

Editora de Ferrante na Itália, a Edizioni E/O já se posicionou oficialmente, condenando a reportagem e afirmando que não responderá a perguntas sobre o caso. A postura está sendo seguida por todas as empresas internacionais que publicam sua obra, indica Mauro Palermo, editor de Ferrante na Biblioteca Azul. Em entrevista ao GLOBO, ele lamenta a iniciativa do jornalista italiano Claudio Gatti, que teve acesso a documentos que registram a movimentação financeira de Anita Raja e de seu marido, o escritor Domenico Starnone. Em seu texto, Gatti mostra que o casal gastou milhões de euros em propriedades nos últimos anos, período que coincidiu com o sucesso de vendas de Ferrante. Ele não chegou a Anita e Starnone por acaso: ambos vinham sendo apontados como possíveis nomes por trás da escritora.

— Ferrante não é uma criminosa para ter sua intimidade invadida desse jeito — diz Palermo, que afirma saber tanto sobre a identidade da escritora quanto qualquer outro leitor. — Ao fazer sucesso, a maioria dos autores quer colher os louros, dar palestras, participar de eventos... Mas ela prefere se recolher, e isso deveria ser respeitado. De qualquer forma, li a tetralogia e posso dizer que seu sucesso independe de ela ter aparecido em público ou não.

Desde a publicação da reportagem, escritores e jornalistas saíram em defesa da autora, questionando os limites éticos da iniciativa. Um artigo do “New York Times” notou que o factoide ressuscitou o debate sobre o “lugar de fala” na escrita (já que Anita Raja não pertence ao universo cultural descrito por Ferrante na tetralogia napolitana). E também lembrou nomes como J. D. Salinger e Thomas Pynchon, cuja ânsia por reclusão acabou atraindo ainda mais atenção em torno de suas figuras. No Brasil, são notórios os casos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, que há décadas recusam entrevistas (“A diferença entre Rubem Fonseca e mim, à parte o fato de ele escrever melhor, é que ele foge da imprensa, e a imprensa foge de mim”, já disse o saudoso Fausto Wolff).

Recentemente, o escocês Irvine Welsh, autor de “Trainspotting”, declarou ao “El país” que “os heróis culturais do nosso tempo são os escritores que aparecem na TV”. Na era da espetacularização da literatura, Elena Ferrante continua se esforçando para ser uma artista sem aparições na mídia e sem declarações bombásticas. O anonimato lhe asseguraria uma liberdade maior para focar em sua obra, explicou certa vez. Em uma carta escrita para sua editora italiana, Sandra Ozzala, chegou a justificar: “Não é verdade que promover livros custa caro? Eu serei a menos cara autora da minha editora”.

Outra romancista que se esconde sob um pseudônimo, a paulistana Isabel Moustakas, autora do thriller “Esta terra selvagem” (Companhia das Letras), diz que se solidariza com Ferrante e que “odiaria se algo do tipo acontecesse” com ela.

— Não posso falar pelos outros, é claro, mas a minha intenção ao não revelar quem sou é uma só: que os meus livros sejam lidos pelo que são, sem os ruídos e as interferências que muitas vezes se colocam entre autores e obras — explica, em entrevista por e-mail. — Fico incomodada com o fato de que, muitas vezes, haja um interesse tão grande pela figura do autor, em detrimento do que é o mais importante, os próprios livros.

Editora da Globo Livros que criou o selo Biblioteca Azul, Eugênia Ribas Vieira se lembra da importância da agente de Ferrante, Ella Sher, na manutenção do segredo de sua identidade.

— Ela nunca me disse uma vírgula sobre a autora e sempre desviou do assunto quando eu perguntava — conta. — Segundo ela, apenas o pessoal da Edizioni E/O mantém contato direto com Ferrante.

— A minha curiosidade me matava... e Ella Sher sempre dizia: “não importa quem é a autora. Por que querem tanto saber da autora?”.

É difícil prever o que acontecerá se a tese de Gatti for comprovada. Editores acreditam que Ferrante deverá se tornar ainda mais reclusa, mas não sabem se cumprirá a promessa, feita antes da polêmica, de que abandonaria a literatura caso fosse desmascarada. A única certeza é que o interesse sobre sua obra nunca foi tão forte.

— Acredito que, nesse momento, dez vezes mais pessoas vão ouvir falar da obra dela pela primeira vez na vida. E quem ganha com essa superexposição? A literatura — diz Pedro Almeida, publisher da Faro Editorial e com passagens pelas áreas de marketing de diversas editoras.