Publicidade
Publicidade
Encalhe, saldo, descarte
PublishNews, Gustavo Martins de Almeida, 03/10/2016
Nosso colunista Gustavo Martins de Almeida analisa, sob o enfoque jurídico, a recente decisão da Cosac Naify de destruir seus encalhes e, a partir daí, revê a legislação mundo afora

Na semana passada, o mundo da cultura – não só editorial – tremeu com a notícia de que a Cosac Naify, dentro do seu desejo de fechar as portas, irá destruir exemplares de obras não vendidas. O caso representa um dos extremos da relevante e delicada atividade do editor: ora os livros encalham, ora a produção esgota. Na primeira hipótese o editor deve imprimir novos exemplares para satisfazer a demanda, e no segundo pode, dentro de algumas condições, vender a obra como saldo ou “dar outra destinação”.

No caso, é importante dizer que a lei brasileira prevê essa hipótese, a de encalhe, e as leis de outros países regulamentam o mesmo tema de forma semelhante. Saliento, no entanto, que este artigo destaca a hipótese de encalhe de obras referentes a um contrato em vigor, sendo que no caso em discussão a Cosac encerrou precocemente as suas atividades e está negociando o escoamento ou extinção do seu estoque.

Vamos direto ao que a lei de direito autoral brasileira (9.610/98) diz a respeito do chamado encalhe:

“Art. 64. Somente decorrido um ano de lançamento da edição, o editor poderá vender, como saldo, os exemplares restantes, desde que o autor seja notificado de que, no prazo de trinta dias, terá prioridade na aquisição dos referidos exemplares pelo preço de saldo.”

Fica claro, então que o autor deve aguardar um ano do lançamento da edição, verificar se não houve vendas (ou constatar que só houve a venda a 10% da edição, a exemplo do artigo seguinte), e só então o editor poderá vender a obra como saldo, tendo o autor preferência na aquisição dos exemplares estocados, desde que a exerça (pode ser comunicando sua intenção, ou depositando desde logo o preço) em até 30 dias a contar da notificação.

Apesar de constar da lei, essa disposição geralmente é reproduzida nos contratos de edição, com pequenos acréscimos, tais como o percentual do desconto, o fato de que não incide o pagamento de direito autoral sobre essa venda, ou mesmo a explicitação de que “o material terá outra destinação, a critério do editor, exceto a comercialização”. Está expresso também que o autor, ou seus herdeiros, terão que ser notificados de que, no prazo de 30 dias, terão prioridade na aquisição dos referidos exemplares pelo preço de saldo

Na outra ponta temos o caso da obra esgotada, que tem que ser prontamente reposta pelo editor, podendo o autor interpelá-lo para imprimir novos exemplares. Assim diz a mesma lei 9.610/98:

“Art. 65. Esgotada a edição, e o editor, com direito a outra, não a publicar, poderá o autor notificá-lo a que o faça em certo prazo, sob pena de perder aquele direito, além de responder por danos.”

Art. 63...............................

§ 2º Considera-se esgotada a edição quando restarem em estoque, em poder do editor, exemplares em número inferior a dez por cento do total da edição.

Vê-se, na interpretação harmônica do art. 65 e do parágrafo 2º do art. 63, que se o estoque da obra em poder do editor for de um número de exemplares inferior a 10% do total da edição, considera-se a mesma esgotada e o autor pode exigir que o editor a publique. Isso não é uma obrigação pura; deve-se levar em conta se há procura, se, por exemplo, a obra foi indicada para ser utilizada em escolas o que prenuncia grande demanda, se o tema é motivo de súbita polêmica, que justifique a procura por aquele título. Mas o fato é que há um referencial numérico, melhor, percentual, para que se considere esgotada a obra.

No caso do encalhe, há um referencial temporal; um ano de lançamento da edição, e eu acrescentaria, para tentar se interpretar harmonicamente a lei, a exigência de que após esse ano houvesse sido vendido no máximo 10% do total da edição. Creio que assim se teria um referencial percentual similar, tanto para encalhe, quanto para a obra esgotada; um referente ao estoque escoado e outro ao estoque guardado.

E esse aspecto do escoamento do estoque não vendido pela Cosac tem relação com o que estipula o art. 63 e § 1º da LDA, que permite ao editor que vier a adquirir a obra do autor (em virtude do fechamento da editora, ou mesmo em função da normal extinção do prazo do contrato de edição nesse período) exigir a retirada de circulação da obra anterior. Assim, se um autor de editora em fase de extinção, que está encerrando os contratos em vigor, vier a adquirir os seus próprios livros em estoque por valor simbólico, não pode pô-los a venda de qualquer forma, para não confundir, ou prejudicar, as vendas do novo editor que ele vier a contratar:

Art. 63. Enquanto não se esgotarem as edições a que tiver direito o editor, não poderá o autor dispor de sua obra, cabendo ao editor o ônus da prova.

§ 1º Na vigência do contrato de edição, assiste ao editor o direito de exigir que se retire de circulação edição da mesma obra feita por outrem.

A regra básica, quando houver o encalhe, é informar clara e comprovadamente (por comunicação escrita) ao autor sobre a venda do livro como saldo ou “outra destinação”. É muito desagradável o fato, mas tem como um dos motivos a necessidade de se contemplar o planejamento do editor, que geralmente arrisca seu faro numa empreitada editorial, em relação ao número de exemplares impressos numa primeira edição (no silêncio do contrato são três mil exemplares) e o custo de edições com números menor de exemplares, que muitas vezes são muito mais caras.

Mas para vermos que o Brasil não está sozinho nessa prática, coligi o que dizem as leis de direito autoral de alguns países, todas girando em torno do que a brasileira estipula a respeito dos livros encalhados.

Comecemos por Portugal, cuja lei diz que, se a obra não se esgotar em cinco anos ou em prazo convencionado o editor “tem a faculdade de vender em saldo ou a peso os exemplares existentes ou de os destruir”, sempre notificando o autor para exercer a preferência na aquisição.

Lei n.º 16/2008 de 1º de Abril

Artigo 99.º

Venda de exemplares em saldo ou a peso

1 — Se a edição da obra se não mostrar esgotada dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, em cinco anos a contar da data da sua publicação, o editor tem a faculdade de vender em saldo ou a peso os exemplares existentes ou de os destruir.

2 — O editor deve prevenir o autor para este exercer o direito de preferência na aquisição do remanescente da edição por preço fixado na base do que produziria a venda em saldo ou a peso.

Já a Espanha tem regra parecida com a do Brasil, podendo a obra ser vendida como saldo após dois anos de circulação (obviamente não tendo sido vendida nesse período). Resta ainda a opção de compra e por último a possibilidade de receber a obra gratuitamente, sem poder comercializá-la.

Real decreto legislativo 1/1996, de 12 de abril

Artículo 67. Derechos de autor en caso de venta en saldo y destrucción de la edición.

1. El editor no podrá, sin consentimento del autor, vender como saldo la edición antes de dos años de la inicial puesta em circulación de los ejemplares.

2. Transcurrido dicho plazo, si el editor decide vender como saldo los que le resten, lo notificará fehacientemente al autor, quien podrá optar por adquirirlos ejerciendo tanteo sobre el precio de saldo o, en el caso de remuneración proporcional, percibir el 10 por 100 del facturado por el editor. La opción deberá ejercerla dentro de los treinta días siguientes al recibo de la notificación.

3. Si, tras el mismo plazo, el editor decide destruir el resto de los ejemplares de una edición, deberá asimismo notificarlo al autor, quien podrá exigir que se le entreguen gratuitamente todos o parte de los ejemplares, dentro del plazo de treinta días desde la notificación. El autor no podrá destinar dichos ejemplares a usos comerciales.

E na Itália vem regra semelhante:

Italia Lei 633 de 22 abril de 1941

Art. 133, Se l'opera non trova smercio sul mercato al prezzo fissato, l'editore prima di svendere gli esemplari stessi a sottoprezzo o di mandarli al macero, deve interpellare l'autore se intende acquistarli per un prezzo calcolato su quello ricavabile dalla vendita a sottoprezzo o ad uso di macero.

Article 133 If the work does not find a sufficient market at the price fixed, the publisher, before selling the remaining copies at a reduced price, or as waste, shall ask the author if he wishes to acquire the copies at a price calculated on basis of the amount obtainable by sale at such price or as waste.

Logo, o dilema do editor é tratado de forma equivalente no mundo, mas o desagradável fato do encalhe é um fato do mercado.

No caso da Cosac, pode até haver obras encalhadas, mas o diferencial negativo, no caso presente, é que ela deliberou unilateralmente o encerramento de suas atividades e em muitos casos nem decorreu o prazo que configuraria encalhe, e justificaria essa providencia muito desagradável.

Uma observação final. Como não há produção de livros físicos, nem estoque, no caso dos livros eletrônicos não há encalhe. Pode não ser vendido o livro, mas não ficam pilhas de papel impresso no estoque, e não se faz necessário adotar esse procedimento de devolução dos livros ou sua “reciclagem”. Da mesma forma, não se verifica o esgotamento da obra durante o contrato; havendo demanda basta serem vendidas mais licenças; nesse caso choram as impressoras e vendedores de papel.

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Tags: Cosac Naify
Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
O já velho 'copia e cola' evoluiu, tecnicamente, para o Frankenstein harmonizado
O direito de autor de obra literária de conservá-la inédita é absoluto? Esse direito passa para seus herdeiros com a sua morte?
Em novo artigo, Gustavo Martins de Almeida aborda o projeto de lei que visa regular o uso da inteligência artificial e discute a polêmica por trás da pergunta
Lei de Acesso à Informação ainda não foi estudada sob o novo ângulo dos usos da inteligência artificial, de recriação e abertura de arquivos, comportando enorme potencial de debate e repercussão no segmento de informação
Em novo artigo, Gustavo Martins fala sobre o potencial das interações culturais com mobiliário urbano e como isso poderia ser melhor aproveitado no Brasil
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Aos autores consagrados, só posso dizer: desistam. Uma vez publicado, um livro não mais pertence ao autor
Novo livro de Carla Serafim se dirige diretamente ao coração, instigando-o a trilhar o caminho do amor-próprio
Uma obra corajosa surge, iluminando os bastidores da sociedade e propondo uma análise única sobre a Rede de Proteção Social
Seção publieditorial do PublishNews traz lançamentos das editoras Ases da Literatura e da Uiclap
A autora Larissa Saldanha compartilha sua história sincera e inspiradora, revelando como por muito tempo viveu sem compreender sua verdadeira identidade e propósito
Sou a favor de qualquer coisa que leve alguém pra dentro da livraria. Até Paulo Coelho.
Luis Fernando Veríssimo
Escritor brasileiro
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar