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Em novo romance, Cristóvão Tezza reflete a crise do Brasil atual

Autor assume voz feminina em 'A tradutora', que acaba de chegar às livrarias

O escritor Cristovão Tezza no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba.
Foto:
Guilherme Pupo/Divulgação
O escritor Cristovão Tezza no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Foto: Guilherme Pupo/Divulgação

RIO — É aquela velha história: se fôssemos deixar um romance, unzinho só, numa suposta cápsula do tempo a ser encontrada daqui a muitos anos por escafandristas ou extraterrestres, um romance que os fizesse sentir (quem sabe até entender) as questões que nos assolaram nestes tempos brasileiros, a nova obra de Cristovão Tezza, “A tradutora”, podia ser metida lá dentro. Dos mais seguros romancistas em plena produção no país, o catarinense conseguiu tocar em temas que esbarram em qualquer pessoa que tenha vivido por aqui nos últimos anos — mais precisamente em 2014, quando se passa a trama, durante os preparativos para receber a Copa do Mundo.

Os conflitos de um relacionamento abusivo, os debates sobre as cotas raciais, as críticas à máfia do futebol, a vida exaustiva de quem tem que “camelar” ou “frilar”, as reuniões de condomínio, a personificação do Facebook, o fetiche da classe média com as religiões africanas, a crise política, até a onipresente expressão “coisa de veado”. Está tudo em qualquer esquina e está tudo no romance. Não por acaso, Tezza o faz sob o ponto de vista de uma protagonista mulher, Beatriz. Resgatada de obras anteriores, aqui ela passa três dias trabalhando como tradutora de um alto executivo da Fifa enquanto tenta se livrar de Donetti, o namorado ególatra, e entregar uma tradução atrasada. E é nas interposições de vozes entre o que Beatriz pensa e o que traduz (e entre o que ouve e o que escreve, entre o que vive e o que conta) que o livro se descola do tempo presente para viajar, talvez na tal cápsula, em direção ao futuro.

Por que retomar personagens antigos?

Porque nos livros anteriores, a coletânea de contos e “Um erro emocional”, Beatriz não havia esgotado o que tinha a me dizer, como personagem, geração, visão de mundo. Ela me obriga a sair de mim mesmo, a deslocar meu olhar de uma forma mais radical, por ser mulher, com a metade da minha idade. E, desde o início, ela se tornou uma ponte para sentir e refletir ficcionalmente o Brasil contemporâneo. Como Donetti é parte integrante da biografia de Beatriz, ele veio junto.

Como foi assumir uma voz feminina?

Como sou um homem dos anos 1950, formatado pela cultura naturalmente machista de um velho Brasil rural, que começou a implodir na virada da geração 68, assumir o ponto de vista feminino foi uma viagem longa, desde “Ensaio da paixão”, de 1980. Elas reapareceram em primeira pessoa em vários livros meus, como “Breve espaço” (1998) e “O fotógrafo” (2004) . Mas, de fato, com a personagem Beatriz esse olhar feminino foi mais longe. Em “A tradutora”, a estrutura romanesca é mais complexa, o que faz de Beatriz uma figura muito multifacetada. Bem, a esperança de quem escreve é sempre a de que o leitor veja o mesmo filme que projetamos na cabeça.

Você já disse que é um escritor “de pouca imaginação fabular”.

Boa literatura é sempre mais intriga do que trama, mas sem esta, nada fica em pé. No caso de “A tradutora”, o fio da trama, que é básica, se organiza inteiro pelo jogo da memória. Em vários momentos, Beatriz relata a uma amiga o que aconteceu. E aí a trama se complica. Os diferentes planos da linguagem fundamentam a narrativa inteira, é a linguagem que lhe dá a vida. Eu brinco com a ideia de imaginação fabular porque na infância era fascinado por autores como Julio Verne e Conan Doyle, e me via escrevendo histórias semelhantes no futuro. Hoje, sinto que minha imaginação sempre foi “realista”, permeada de reflexão. Mas é bom desconfiar de escritor que explica demais...

Há referências muito frescas em todo o romance: as personagens tiram selfies, brigam pelo Facebook, têm “um lance”. Você se divertiu escrevendo?

“A tradutora” é um romance inteiro pensado no tempo presente, como tem sido a minha literatura já há alguns anos. Procuro sempre extrair o que há de permanente no instante fugaz. Cotas, FIFA e Dilma são temas que transcendem nosso tempo, ao mesmo tempo que o delimitam. A literatura tem de sempre ir mais longe do que o jornalismo e a opinião direta, ou não terá função. Um romance é uma hipótese existencial que oferecemos ao leitor. Ao mesmo tempo, sou um escritor com o ouvido atento ao ritmo da oralidade. Todo romance é o texto de alguém que “fala”, mas no plano da representação, não da cópia direta. Em vários momentos da escrita senti um grande prazer na produção do livro. A angústia surge depois, quando temos o conjunto na mão e é preciso amarrar as pontas.

É um romance irado, com muitas críticas aos tempos atuais.

Vivemos num tempo crispado, em que tudo parece nos ferir. O livro absorve essa atmosfera onipresente pelos olhos de Beatriz, uma pessoa comum num momento de crise pessoal, mas também de boa expectativa profissional, em três dias de sua vida. Há um contraponto importante à aparente leveza de Beatriz: os fragmentos de Felip Xaveste, o pensador que ela está traduzindo, e que permeiam a narrativa inteira como pontos frios de reflexão. Xaveste é uma espécie de blasfêmia agressiva a vários lugares comuns do pensamento contemporâneo, que Beatriz acompanha sem refletir muito por estar imbuída do puro espírito da “tradução”.

O ambiente do futebol funciona para explicar o mundo, como dá a entender no livro?

Aprendi a gostar mais intensamente de futebol a partir da convivência com o meu filho Felipe, que tem síndrome de Down. Percebi que o futebol se tornou para ele uma espécie de porta de entrada para a compreensão do mundo, da vida, das pessoas, um elemento poderoso de socialização. Ao mesmo tempo, passei a sentir no futebol a minha reserva selvagem, irracional; não sou recomendável como torcedor. Naquela hora e meia em que o Atlético Paranaense joga, meu lado ogro assoma, e eu solto a corda. Acaba sendo uma boa terapia. Terminado o jogo, volto rapidamente ao normal.