“A gente tinha que fotografar isso, para sair nos jornais quando forem contar nossa história, daqui a 20 anos”. Estávamos estourando um champanhe inaugural, três sócias e eu, em torno de uma mesa de piquenique, nosso escritório improvisado. Estávamos fundando a Casa da Palavra. Isso foi há 20 anos.
Naquele julho de 1996 não tínhamos idade, dinheiro… ou noção. Mal saindo da faculdade, minha única experiência editorial fora em uma empresa em arrastada decadência, onde eu, diretor de marketing com 22 anos, tinha que me virar para promover títulos como A vida no Planeta Marte assinada pelo espírito Ramatís.
Para ter “sustentabilidade” (palavra que então nem existia), surfamos na grande “inovação tecnológica” do fim do século passado, a “editoração eletrônica” (pergunte a seu pai). O processo ainda artesanal do livro — que dependia de paste-ups, letrasets e fotolitos — começava a ser transferido às telas dos PCs 386 ou dos Macintoshes LC II. De posse da “tecnologia” e de certa cara-de-pau, batemos à porta das editoras para oferecer nossos “serviços” — diagramação, design, redação e do que mais o que o freguês precisasse. Trabalhar “para fora” foi um curso intensivo: aprendíamos fazendo (e errando), ao mesmo tempo em que conhecíamos o (pequeno) mundo das editoras e editores.
Depois de um tempo, começamos a trabalhar “para dentro” e lançamos nossos primeiros títulos: livros sobre livros; clássicos resgatados; obras “cariocas”. Já estávamos no nosso terceiro escritório (compartilhado com a 7Letras) e continuávamos a crescer e aparecer. Ganhamos a simpatia do mercado e da imprensa: “jovens editores” foi um predicado que nos seguiu até estarmos com quase 40 anos.
Foi mais ou menos naquela época que uma novela do Manoel Carlos mostrou Tony Ramos como um editor que saía do escritório do Leblon para tomar martinis com a Vera Fischer às três da tarde. Coincidência ou não, começaram a bater na nossa porta gente que queria saber “como é esse negócio de ser editor”. Algumas dessas pessoas abriram editoras, logo fechadas; já outra tornou-se um editor extremamente bem-sucedido.
Das conversas vieram parcerias, coedições, ações. O mundo do livro era menor, mas havia, parece, mais gente. Foi em nosso quarto escritório, na Cinelândia, que se começou a fazer a Libre, uma “liga” para as editoras “independentes” que não se viam representadas na política ou nas prateleiras.
Nosso crescimento era exponencial: dobrávamos o catálogo e o faturamento a cada ano. O que era bem fácil quando começamos, com dois títulos e mil reais. Quando chegamos porém ao centésimo ISBN e às dezenas de funcionários e faturas, crescer, ou mesmo se manter, virou um desafio. Foi a época em que comecei a passar de Editor para Auditor, mais preocupado com as contas do que com os manuscritos.
A Casa da Palavra, para manter seu “negócio do livro”, teve que jogar pelas novas regras, o que incluía lançar os mesmos livros, pelas mesmas livrarias, do mesmo jeito. Já não tínhamos mais as vantagens de ser pequena e ainda não tínhamos o poder das grandes. Tivemos que entrar na ciranda das fusões com outros grupos editoriais.
Antes que tal grupo entrasse, eu saí. E fui para bem longe: Xangai, Pequim. Isso foi em 2008, mas até outro dia ainda ouvia gente se referindo a mim como “Julio-da-Casa-da-Palavra”.
Depois do sabático estava cheio de ideias, mas duas pancadas, uma profissional e outra pessoal, me jogaram de volta no mercado tradicional. Entrei no grupo Ediouro, dirigi a Nova Fronteira-Agir, acabei publisher da Thomas Nelson. E então começou a bater uma nova “onda tecnológica”, e eu estava louco para surfar.
Em 2011 abri a Ímã Editorial, metade editora, metade laboratório (e playground), para explorar as possibilidades abertas pelo digital. Fui movido também pela esperança de que a publicação digital pudesse fechar a conta da equação do livro — coisa que eu não vira acontecer nem em microeditoras nem em multinacionais. Nestes poucos anos a Ímã já “publicou” festivais e debates, livros-na-mídia-social, livros-site-video, livro-mídia-social-filme. A aventura tem sido divertida e instável. O digital talvez seja uma tábua de salvação para o Titanic do mercado editorial, mas em uma tábua (ou na tampa de um piano), não cabe muita gente.
Nestes tempos desoladores, a Casa da Palavra continua forte com Martha Ribas, a única sócia entre aqueles que beberam o champanhe inaugural, lá em 1996. Cumprindo as palavras de Schiffrin, que a própria editora imprimiu há dez anos, a Casa da Palavra hoje faz parte de um grande grupo editorial, a LeYa, um dos que perseveram em um mercado cada vez mais concentrado, indistinto e financeiramente impraticável. Se a Casa da Palavra continua ativa, ainda que “adaptada”, outras editoras da mesma época vêm se reinventando para não chegar ao mesmo fim de outra casa que também estaria comemorando 20 anos, a Cosac Naify.
Sei que vou comemorar os 30 anos da Casa da Palavra, e depois seus 40. Sei também que para chegar nos próximos 20 anos ela — e todos nós — vamos ter que nos adaptar, reinventar, nos retransformar. Assim como tem feito, há 20 séculos, o próprio Livro.
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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