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Livro esmiúça curto e intenso exílio de Mário de Andrade no Rio

Obra de Moacir Werneck de Castro conta com mais de 20 cartas endereçadas pelo poeta modernista ao autor

Mário de Andrade em sua casa, em 1935
Foto: Instituto de estudos brasileiros (IEB)/USP
Mário de Andrade em sua casa, em 1935 Foto: Instituto de estudos brasileiros (IEB)/USP

RIO — Foram muitas as viagens de Mário de Andrade ao Rio. Em 1916, veio fazer o treinamento militar, em um bairro da Zona Oeste. Voltou à cidade para preparar um artigo sobre a arquitetura religiosa carioca, publicado na “Revista do Brasil’’, em 1920. Como poeta modernista, em 1921, veio ler poemas que iriam compor “Pauliceia desvairada’’, do ano seguinte. A viagem de 1923 inspirou os versos de “Carnaval carioca”. Nos anos 1930, houve as viagens de trabalho, como a de 1936, quando recebeu do ministro Capanema a incumbência de elaborar o projeto do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional.

O Rio foi o lugar escolhido para recomeçar a vida, depois da malograda experiência na chefia do Departamento de Cultura. Mário morou na cidade de meados de 1938 até março de 1941. Este período é o assunto do livro de Moacir Werneck de Castro, “Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, lançado agora em nova edição. Depois do retorno a São Paulo, Mário voltou ao Rio outras vezes. Em 1942, para fazer a palestra comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, O Movimento Modernista.

“Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, publicado pela primeira vez em 1989, tem importância sob vários aspectos. Contém mais de 20 cartas endereçadas por Mário ao autor, e, além disso, traz o depoimento de quem conviveu com o poeta naqueles anos difíceis. O plano inicial era a publicação das cartas. Com o estímulo de Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, foi elaborada a apresentação/depoimento. Moacir adverte que não teve a pretensão de fazer um ensaio sobre Mário de Andrade. O livro também não é uma biografia completa, pois se ocupa de um período bem delimitado da vida. Naturalmente, para cercar o assunto, são fornecidas informações sobre o que sucedeu antes e depois do “exílio no Rio”. De todo modo, o livro foi a primeira abordagem biográfica de Mário de Andrade e sobram motivos para ser leitura obrigatória dos estudiosos. Os dados mais relevantes do período anterior relacionam-se, em grande parte, com a atuação do escritor na direção do Departamento de Cultura de São Paulo, de 1935 a 1937. Não poderia ser diferente: o afastamento forçado do cargo, por motivos políticos, motivou a ida para o Rio. Mário viveu esta experiência como um duro golpe no valor da sua vocação intelectual. As iniciativas à frente do Departamento ainda precisam ser devidamente avaliadas, especialmente a noção de expansão cultural, que norteou todo o projeto. Muito ganharia o debate atual sobre as relações entre o poder público e a cultura se isso pudesse acontecer.

Moacir avança algumas hipóteses para entender o estado depressivo do poeta no período do Rio. O cenário político era dos piores, com a ditadura interna e o risco da vitória da Alemanha nazista. O afastamento do ambiente familiar, especialmente da mãe, era difícil de suportar. Havia ainda a frustração com o relativo insucesso dos projetos cariocas. Moacir foi o primeiro a abordar a homossexualidade de Mário, mas introduz o assunto de maneira quase envergonhada. Vê a orientação sexual como um problema, e, mais ainda, isolado de um contexto mais amplo de conflitos do poeta. O recurso ao álcool como um paliativo também é mencionado. Pode-se acrescentar que a instabilidade emocional de Mário vinha de muito antes, tendo se agravado naquele momento.

INTERPRETAÇÕES DISCUTÍVEIS SOBRE POLÍTICA

“Mário de Andrade — Exílio no Rio’’ traz informações muito importantes, mas também propõe interpretações bastante discutíveis de alguns pontos da trajetória do escritor. Moacir é incapaz de perceber que a radicalização política das ideias de Mário, naquele momento, representou uma ruptura com tudo o que ele pensava anteriormente, sobretudo com o projeto na chefia do Departamento. Só o desespero explica o final autopunitivo da conferência O Movimento Modernista, de 1942, e o elogio à censura soviética na apresentação de um livro sobre Shostakovich. Além disso, o livro superestima o papel dos moços na vida de Mário nessa época. Mário tinha uma vocação pedagógica incontida, não sendo esse aspecto o mais interessante de sua personalidade; vivia ensinando. Dificilmente teria alguma coisa a aprender com os jovens católicos de Minas, com os universitários iniciantes de Clima e, tampouco, com o grupo do Rio, de que fazia parte o próprio Moacir, Carlos Lacerda, Lúcio Rangel e Murilo Miranda.

Em um livro da importância de “Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, alguns erros de detalhe poderiam ter sido corrigidos, fixando a data da publicação de “Macunaíma’’ em 1928, e dando a localização do Engenho Bom Jardim, que Mário visitou, no Rio Grande do Norte.

A reedição desse livro vem trazer, de novo, informações valiosas para os leitores de Mário de Andrade e deve estimular a discussão sobre uma das interpretações — aquela mais frequentemente adotada — da trajetória do principal escritor modernista. É de se esperar que desperte nos editores o interesse pela reedição de outros importantes estudos, como o imprescindível “História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna’’, de Mário da Silva Brito.

*Eduardo Jardim é professor aposentado do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e autor, entre outros livros, de “Eu sou trezentos — Mário de Andrade: vida e obra” (Edições de Janeiro, 2015)