Um e-book nem de fracasso, nem de sucesso
PublishNews, Haroldo Ceravolo*, 30/06/2016
Haroldo Ceravolo discute a importância do PDF e como o avanço lento do livro digital é não apenas uma questão tecnológica, mas também de capital

Retomo os temas dos textos dos últimos dias publicados pelo PublishNews a convite do Carlo Carrenho, apesar da preguiça e da falta de tempo, por um motivo só: adoro polêmicas.

E especialmente certas polêmicas, que nasceram para fazer sucesso, não necessariamente para acrescentar algo substancial à discussão: é o caso das que recorrem a palavras um tanto vazias de conteúdo, como "sucesso" e "fracasso", mas que são, sempre, deliciosas.

Então, em vez de partir da conclusão ("fracasso" ou "sucesso"), vou evitar essas palavras até o fim do texto para tentar pensar historicamente um pouco a coisa.

Em 2000, estive, como jornalista, pela primeira vez na Feira de Frankfurt. Um dos meus textos, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, começava assim: "Se essa era para ser a feira em que o livro eletrônico começaria a ameaçar o de papel, é melhor esperar pelas próximas edições do encontro que acontece anualmente em Frankfurt. Quem andou pelo pavilhão dedicado ao mundo eletrônico reencontrou velhas promessas apenas 'recauchutadas': a impressão (em papel) sob demanda, um bom novo modelo e e-book (EB1200) da Gemstar, uma versão mais atualizada do Acrobat, que permite alguma navegação na web."

O texto discutia uma série de questões que ainda não foram de todo superadas. Quantidade de títulos em formato digital, estratégias do papel para se recompor diante dos novos tempos (papel antixérox, imagino que já abandonado, e impressão sob demanda, que pegou, ma non troppo) e, menos do que devia, conforto do público.

De lá pra cá tivemos os Kindles, os Kobos, o iPad. Muita coisa melhorou, mas, convenhamos, o que não saiu de moda era algo que tinha conhecido uns anos antes (1996, se não me engano), ainda na redação da Folha, apresentado por uma colega da editoria de ciências: o PDF.

O PDF é um formato eletrônico fantástico. Cumpre com louvor exigências inimagináveis antes de sua existência. Comparado a ele, o ePub, que surgiu muito depois, é uma carroça.

Mas as carroças eram ferramentas muito úteis depois da invenção da roda. Elas permitiram domar e organizar a força dos cavalos, seja para o transporte de gente, seja para o transporte de produtos. Carros e caminhões fazem a maior parte desse trabalho hoje em dia, mas a carroça cumpriu seu papel e ainda circula por aí.

O livro digital não substituiu (e provavelmente não venha a substituir totalmente) o livro de papel, mas já mudou muito o mercado editorial.

Cada editora sabe como isso impacta o seu setor. Para seguir editando em papel, é preciso, por exemplo, pensar qual o tamanho de livro ainda cabe numa biblioteca de madeira: livros pequenos demais tendem a ser substituídos por cópias em PDF, lidos em tablets, celulares ou computadores. Livros grandes demais já não fazem tanto sentido, por outro lado, e ficam melhores em ePub: é o que acontece, na minha opinião, com obras completas e séries completas – não pretendo ter mais em papel em casa, por exemplo, A Comédia Humana, de Balzac, e os Rougon-Macquart, de Zola, que já foram sonhos de um menino louco por livros.

Agora, ler Nana, um dos vinte livros da série de Zola, em papel, me parece muito mais bacana do que no ePub. Não preciso me preocupar se há bateria, posso escrever nas margens sem medo de perder as anotações, se o livro cair na pia da cozinha, há uma chance razoável de recuperar sua condição de uso. Se não for possível, será bem mais barato comprar um novo do que um aparelho inteiro.

O avanço lento do livro digital é, por outro lado, não apenas uma questão tecnológica, mas também de capital e de como o grande capital "pensa". A rentabilidade exigida pelos "grandes players" do setor não está em consonância com o capital investido na produção de conteúdos em ePub. Como o investimento na conversão e na produção do conteúdo digital tem sido bancado basicamente pelas editoras, que vivem no mundo todo um sufoco diante de outras pressões de modernização, grande parte do catálogo mundial, que não está ainda sob o controle oligopolista de conglomerados do tipo Penguin Random House, não será digitalizado num ritmo que force o consumidor de livros a migrar mais rapidamente para novas plataformas.

Avalio isso assim já há alguns anos: se os grandes vendedores de livro digital querem um mercado fértil e diverso, que realmente atraia os consumidores, poderiam direcionar parte dos investimentos que atualmente servem para vasculhar o perfil e os hábitos dos leitores para a conversão dos conteúdos. A conversão acelerada de conteúdos traria mais consumidores para o livro digital do que mil robôs prevendo comportamentos e gostos de quem já é usuário.

O problema aqui não é tecnológico nem de capital suficiente, é ideológico: as empresas que desenvolvem os grandes sistemas digitais, inclusive no setor dos livros, atuam no sentido de engolir os menores, de acumular, de concentrar mercados, não de fazê-los florescer. Assim, não faz sentido direcionar recursos para empresas que tornam a circulação do livro, unitariamente, menos rentável – ainda que, com a participação delas, o mercado pudesse ser mais amplo, dinâmico, rentável em termos absolutos e, o que me parece o mais importante, culturalmente relevante.

Assim, concluo voltando aos termos originais: fracasso e sucesso. O livro digital não é nem o sucesso prometido pela indústria e pelo mercado de capitais, nem o fracasso tecnológico que essa expansão mais lenta do que o previsto pudesse sugerir.

Se o modelo tecnologicamente careta e concentrador dos ePubs ainda patina, e se ainda não estamos diante de um formato definitivo, muito menos contamos com aparelhos de fato confortáveis, o fato é que a leitura em digital é uma realidade. Ela usa dos mais diferentes recursos, formatos, redes sociais. Bibliotecas digitais que usam PDFs são bastante úteis para professores e pesquisadores, muito mais do que a venda individual de ePubs.


*Haroldo Ceravolo é jornalista e editor da Alameda Editorial. Possui doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo e foi presidente da Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) de 2011 a 2015.

[30/06/2016 08:00:00]