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Livros de colorir, livros digitais, livros: Ser ou não ser um livro?
PublishNews, Felipe LIndoso, 23/06/2016
Felipe Lindoso discute o que é um livro em face do fisco britânico ter decidido taxar os livros de colorir

Um dos blogs que costumo seguir é o do catalão Bernat Ruiz, Verba Volant, Scripta Manent (nada a ver com a epístola do usurpador). O post desta semana, "Libros que nunca lo fueron", coincidentemente, saiu no mesmo dia em que o PublishNews publicou a coluna do Paulo Tedesco, "Um e-book de fracasso", no qual se dedica a desvalorizar os e-books (a polêmica prossegue com a resposta do André Palme e uma intensa discussão no Facebook).

Na verdade, os dois artigos tangenciam o tema que marca este texto. O do Bernat Ruiz está muito mais focado na questão de se os livros de colorir para adultos podem ou não ser considerados livros. Mas vamos, lá, começando pelo Ruiz.

Ele anuncia que a HMRC britânica, mais ou menos equivalente à nossa Receita Federal, enviou correspondência às editoras do Reino Unido exigindo o pagamento de IVA para “los cuadernos de colorear para adultos”. Nossos populares (no ano passado) livros de colorir. O Reino Unido não cobra IVA de livros, livros infantis de pinturas e gravuras, mapas e cartas geográficas, revistas, jornais, música impressa ou copiada (partituras) e publicações (alguns tipos de publicações, como livros de exercícios e cartazes, pagam a taxa padrão). Existe uma discussão pendente na União Europeia em conjunto e em cada país, e também por aqui, sobre os livros eletrônicos.

E Sua Majestade anunciou que vai cobrar o imposto dos livros de colorir para adultos. Esse é o tema do post do Bernat Ruiz.

Livros de colorir são livros?

Uma polêmica que existiu aqui também, e se esvaneceu. Os livros para colorir foram aceitos como livros e, portanto, imunes à tributação. Barnat, entretanto, esmiuça a polêmica. Cita a definição de livro da UNESCO (a famosa que define livro como publicação de pelo menos quarenta e nove páginas fora a capa), a Lei do Livro Espanhola; cita a Wikipédia e outros quetais. No final, lamenta que sejam as autoridades fiscais que definam o que é livro e aí, sim, entra na seara do livro digital.

A polêmica na Europa e aqui remete a um conceito básico: o livro digital seria um “serviço” – como os demais softwares – ou uma nova “forma” de livro? E ele conclui, decisivo: “Todo produto baseado em conteúdo que entra em contato com a Internet tende a se transformar em serviço”. Portanto, deixa de ser livro. E mais, afirma que “nunca foram”, já que o conteúdo se tornou imaterial, e todas as definições de livro citadas por ele remetem, sempre, ao suporte papel para a caracterização do livro como tal.

Desenvolve também uma curiosa e interessante analogia com o conteúdo do livro como uma “prótese... que serve a una função cognitiva imaterial para a qual necessitamos um suporte físico”. Segue em frente com uma série de argumentos que me pareceram escolásticos em torno do tema.

No final, entretanto, reivindica que a indústria editorial deve se posicionar sobre certas ambiguidades surgidas com a Internet – como as que ele assinala – se não quiser que outros, fiscalistas e agências de arrecadação de impostos, o façam por ela. E conclui: “Certos limites serão ambíguos e algumas decisões deverão ser arbitrárias, mas eu começaria pela mais fácil, por aqueles livros que deixaram de sê-lo porque nunca o foram”.

Ou seja, quem deve definir o que é livro deve ser a indústria editorial, e não as autoridades fiscais.

Bem, por aqui, o mercado decidiu: livro de colorir é livro.

A discussão sobre o livro eletrônico caminha (aparentemente no sentido de considerá-lo como livro mesmo), inclusive com base em outras questões que são mais bem examinadas sempre pelo Dr. Gustavo Almeida, advogado especialista na área editorial (inclusive direitos de autor), e que já escreveu belas colunas no PublishNews sobre assuntos correlatos.

Entretanto, minha opinião – se vale alguma coisa, já que não sou nem advogado nem tributarista – sobre os livros de colorir se baseia em outras questões, que procurarei resumir aqui.

Lá em 2004 eu estava na condição de Consultor do CERLAC para o programa “Fome de Livros”, na época sob a responsabilidade do Galeno Amorim. Esse trabalho teve dois resultados importantes. O primeiro foi a extensão da imunidade fiscal do PIS/PASEP e COFINS para editoras e livrarias (Lei 10.925/2004), o segundo foi o processo de instituição do PNLL, a partir do VivaLeitura, em 2005.

Um dia li a notícia que a Receita Federal iria instituir a imunidade do PIS/PASEP e do COFINS (contribuições que incidem sobre o faturamento das empresas) para os importadores de “livros técnico-científicos”.

Então fiz o levantamento: o que é o livro, do ponto de vista tributário?

A resposta veio em um calhamaço que dá as definições de cada tipo de produto, para fins fiscais. São grupos, categorias e subcategorias de produtos. Todo o calhamaço pode ser visto aqui.

Esse negócio detalha exatamente isso. O livro está inscrito no capítulo 49, "Livros, jornais, gravuras e outros produtos das indústrias gráficas; textos manuscritos ou datilografados, planos e plantas". É a posição 49.1, que diz:

NCM

DESCRIÇÃO

TEC (%)

49.01

Livros, brochuras e impressos semelhantes, mesmo em folhas soltas.

4901.10.00

- Em folhas soltas, mesmo dobradas

0

4901.9

- Outros:

4901.91.00

- Dicionários e enciclopédias, mesmo em fascículos

0

4901.99.00

- Outros

0

TEC = Tarifa comum de exportação

E, igualmente importante, na apresentação do capítulo:

“4.- Também se incluem na posição 49.01:

a) As coletâneas de gravuras, de reproduções de obras de arte, de desenhos, etc., que constituam obras completas, paginadas e suscetíveis de formar um livro, quando acompanhadas de um texto referente a essas obras ou aos seus autores;

b) As ilustrações que acompanham os livros e que deles sejam complemento;

c) Os livros apresentados em fascículos ou em folhas soltas de qualquer formato, que constituam uma obra completa ou parte de uma obra e que se destinem a ser brochados, cartonados ou encadernados.

Todavia, as gravuras, reproduções e ilustrações, sem texto, que se apresentem em folhas soltas de qualquer formato incluem-se na posição 49.11.”

Entretanto, a Constituição Federal estabelece, no Inciso IX do art. 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] "IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;"

Meu argumento:

Se a Constituição diz que é proibida a censura, como é que vamos deixar que um fiscal da alfândega defina o conteúdo de um livro? Ao definir se o conteúdo é “técnico-científico” ou não, o fiscal da Receita estará, de fato, exercendo o papel de censor, e portanto infringindo dispositivo constitucional.

Foi por essa brecha, aberta pela própria Receita Federal, que avançou a desoneração de editoras e livrarias dessas contribuições. Que ficou incompleta, já que o Simples desprezou esse detalhe, mas isso já é outra conversa.

Ora, se conteúdo não é relevante na definição fiscal de livro, os benditos livros de colorir são, efetivamente, livros.

É importante assinalar que, quando editores, livreiros e autores reclamam da inclusão ou exclusão de determinados tipos de livros por conta de seu conteúdo – por exemplo, na imunidade fiscal – estão, de fato, pedindo que censores determinem o que é livro. E o que começa com livros de colorir pode terminar onde? E não pensem que é brincadeira. A cada momento, no Congresso, tramita pelo menos uma dúzia de projetos (na maioria de parlamentares evangélicos) propondo que a imunidade só valha para os livros “bons”. Felizmente tudo isso é capado na Comissão de Constituição e Justiça, por ser inconstitucional.

As definições acima mencionadas não são “brasileiras”. São parte do aparato jurídico que rege o comércio internacional e sua estrutura tributária, regidas pela OMC (Organização Mundial do Comércio) e pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), e todas fazem parte do sistema das Nações Unidas (é por isso que a definição da UNESCO vai por aí, já que as peças elaboradas dentro desse quadro devem ser compatíveis entre si). Por isso, os editores e livreiros ingleses provavelmente conseguirão reverter a decisão dos coletores de impostos da Rainha.

A questão da imunidade para os livros eletrônicos vai ficar para outra ocasião.

O que quero frisar, entretanto, é que as discussões desse tipo devem fugir da amarra do sentido comum e buscar, sempre, a situação legal do problema em questão, os famosos detalhes que podem definir o resultado. Tal como o bater de asas de uma borboleta pode contribuir para um furação, segundo a teoria do caos, a rejeição aos livros de colorir pode acabar por reforçar a censura.

No final das contas, se um livro é um livro, o que é um livro?

Hamletiano, não?

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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Jornalista e escritor brasileiro
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