• Bruno Vaiano
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 (Foto: Izabela Barrero)

(Foto: Izabela Barrero)

Se você, por impaciência, já desativou o corretor ortográfico do WhatsApp, está na hora de reconsiderar a adoção do revisor robótico. Machado de Assis, o mais célebre autor da literatura brasileira, teria sido salvo pela ferramenta caso ela existisse por aqui. No prefácio da segunda edição de sua obra Poesias Completas, publicada em 1902, a palavra "cegara" foi substituída, na expressão “lhe cegara o juízo”, por um inusitado “cagara”.
 

O erro é ainda mais grave do que aparenta. Poesias Completas era, como indica o nome, uma coletânea dos quatro livros de poemas lançados anteriormente pelo autor: Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais. O primeiro desses livros  vinha com um prefácio escrito por um advogado e amigo do escritor chamado Caetano Filgueiras, que costumava organizar saraus em sua casa e conhecera Machado ainda jovem.

O escritor, porém, não era fã de sua própria obra poética. O prefácio original do amigo, que elogiava seus versos, foi omitido por opção do autor na segunda edição, que justificou a troca afirmando, em uma nota de advertência, que  “a afeição do defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não viria a ponto reproduzir aqui aquela saudação inicial”. Machado demonstrou humildade ao atribuir os elogios à amizade de Filgueiras, àquela altura já morto, mas não deu sorte na gráfica.

Seu editor, na época, era Baptiste-Louis Garnier, francês radicado no Brasil e proprietário de uma das mais importante editoras nacionais do período, a Garnier Frères, ou Irmãos Garnier. Os livros de Garnier, entre eles os de Machado, eram compostos e impressos na França.

“Foi natural a troca de uma letra por um tipógrafo francês na composição de um texto em português”, explica o jornalista e escritor Marcos Barrero, dono do exemplar do livro fotografado para esta matéria."Cegara" se tornou "cagara", e a solução foi corrigir, a mão, livro por livro. “Um funcionário da Garnier, chamado Everardo Lemos, sugeriu que raspassem a letra ‘a’ e escrevessem por cima, em nanquim, a letra ‘e’.”

Entre os bibliófilos, nome dado a colecionadores de livros raros e preciosos, corre a lenda de que o próprio Machado teria participado do mutirão de correção de livros organizado na livraria naquele dia, e que muitas das letras “e” teriam sido escritas pelo próprio autor já idoso e muito doente.

Alguns exemplares, porém, escaparam, e foram vendidos antes da troca manual. O segundo lote chegou ao Brasil já retificado, originando três versões distintas: a original, uma com a correção manual e outra com a correção tipográfica. Todos são muito raros. “Tanto os livros que saíram com o erro quanto o lote que trouxe a correção são disputadas a peso de ouro por bibliófilos, estudiosos e antiquários”, explica Barrero. “Ele vale entre 1000 e 2000 reais”. A história foi publicada por Barrero no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo em 24 de setembro de 1988, sob o título “As faces malditas do autor de Dom Casmurro”.