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Juliana Frank revira baú de más memórias em romance que lança na Flip

‘Se está escrito, aconteceu. Se é verdade, não importa’, provoca escritora

Juliana Frank lança na Flip o romance “Uísque e vergonha”
Foto: Fernando Lemos /
Juliana Frank lança na Flip o romance “Uísque e vergonha” Foto: Fernando Lemos /

RIO - No último Dia dos Namorados, a escritora Juliana Frank caminhava para casa, em Botafogo, quando avistou no portão do Cemitério São João Batista um urso de pelúcia abandonado. Cor-de-rosa, o bicho tinha o tamanho de uma criança de três anos, uma flor vermelha presa à pata esquerda, um olho de botão a menos. Não titubeou. Levou-o para o seu apartamento, onde foi fazer companhia a um guarda-chuva que faz as vezes de biombo na sala e uma foto rasgada, em preto e branco, de um sujeito dos anos 1930.

— Eu gosto de más memórias. Objetos que parecem ter tido sua história interrompida, ou que me fazem imaginar a quem pertenceram. Estou aberta às más memórias. São boas imagens — comenta Juliana, num sobrado que tem as paredes rabiscadas com as frases “Ai de moi” e “A beleza convulsiona”.

No romance que lançará no fim do mês, na Flip, “Uísque e vergonha” (Oito e meio), Juliana Frank revira um baú de más memórias. De lá, tira a história embolorada de Charlotiê, jovem que foge da família aos 15 anos e, morando nas ruas, entra em surtos hiperbólicos ao usar cola de sapateiro. Juliana também saiu da casa dos pais aos 15 anos (“foi melhor assim”, diz ela) e também usou cola de sapateiro (“mas só duas vezes”). Dos delírios existenciais que também comunga com a personagem, sobrou a escrita.

— Pode escrever aí: é o primeiro romance brasileiro em que a droga-fetiche não é a cocaína, mas a cola de sapateiro, que tanta gente usa e não se fala — provoca Juliana. — É ficção, mas também é autoficção, é viral, é música. “Uísque e vergonha” é um pouco de tudo. Quem já usou cola sabe que a alucinação é um ciclo curto, em que você apaga e volta, mas que o senso de realidade fica atiçado. É nesses espasmos que a personagem se revela.

Charlotiê é uma Lolita que desce e sobe a Rua Augusta, em busca de paz ou sexo, sob a pena rascante de Juliana: “Quando eu cheiro cola me vejo sendo lacrana, cuidando das mentes, parada entre quadros que até soltam fumaça de tão velhos e encarquilhados”, escreve, num dos trechos.

Se o romance é um relato inspirado na vida da autora, não importa. Embora a confusão com suas personagens já tenha lhe dado problemas: quando lançou o primeiro livro, “Quenga de plástico” (7Letras), obra que chamou a atenção de autores como Marçal Aquino e Reinaldo Moraes, em 2011, ela teve de se mudar de bairro. Os vizinhos acharam que ela era a atriz pornô que protagoniza a trama e passaram a hostilizá-la. Quando lançou “Meu coração de pedra-pomes” (Companhia das Letras), no ano seguinte, passou a ser assediada por e-mail, como se a história da faxineira Lawanda, que trocava favores sexuais por dinheiro, fosse a sua. Mas com a coluna de ficção mensal que assina na nova “Playboy”, desde maio, ainda não teve surpresas.

— Nem eram desconhecidos, mas conhecidos mesmo, sabe? Eu parei de me importar com essa confusão, se sou puta, atriz pornô, desempregada, agora essa drogada... Aprendi a me defender e entendi que toda vez que alguém me confunde, significa que me comuniquei bem. Cheguei à conclusão de que o disfarce é a grande arma da contemporaneidade. O meu lugar é meio afastado do mundo, meio alheio. Só entra na minha vida quem já desistiu de me entender ou quem percebe que é tudo muito simples — diz ela, tirando a roupa na frente da câmera do fotógrafo, sem que ninguém tenha pedido.

Mas “o que atropelava a verdade era a roupa”, como escreve Oswald de Andrade no “Manifesto Antropófago”, e a entrevista segue com Juliana sem blusa. Ela explica o que tirou de lição dos episódios:

— Essa coisa da autoficção fez as pessoas acreditarem que existe uma realidade. Uma verdade. Eu estou aqui como um bobo da corte do Rei Lear para mostrar que não existe. Existe imaginação, realismo, razão, intelectualidade, existe o Cortázar dizendo que o que escreve é surrealismo. A obsessão das pessoas pela verdade afasta as pessoas do que realmente acontece. Quando as pessoas querem saber se aquelas coisas todas aconteceram, elas têm que saber que dentro do livro elas aconteceram. Se eu escrevi, aconteceu. Mas se é verdade, não importa. O que escrevi basta. As pessoas costumam ler e perguntar: muito bom o seu livro, por que você não faz um filme? Porque já é um livro, oras. Ele se basta. Que mania que se tem de que tudo tem que virar outra coisa, que tudo tem que “dar certo”.

Na Flip, Juliana divide a mesa “Sexografias” com a peruana Gabriela Wiener, na sexta à noite, dia 1º de julho, às 21h30m. O encontro tem tudo para ser o mais quente do evento, com o mote “Corpo, erotismo e experiências sexuais radicais”. Mas a autora, que vende a segurança de quem saiu de casa cedo, já foi garçonete em São Paulo, modelo vivo em Buenos Aires (onde morou três anos estudando Filosofia), a mesma segurança de quem já casou diversas vezes, apesar dos poucos 30 anos, confessou nervosismo com a estreia no evento literário.

— Já li tudo que havia na internet sobre ela, estou esperando o livro chegar. Gostei muito, ela faz uma literatura muito responsável. Quero falar sobre essas definições de autoficção que tanto instigam os autores hoje em dia. O caminho da escrita exige que você faça as pazes com muitas coisas. Porque não dá para você fingir e escrever sobre o que não seja muito verdadeiro. Para você ter tesão real, verve, só dá para falar daquilo do seu jeito. Mas vou ficar nervosa, já sei, por isso reservei hospedagem num hotel que tem cavalos. Vou andar a cavalo para não pensar muito...

Além das más memórias, da confusão com as personagens, da verdade atropelada pela roupa e da vida nômade, há um bocado de amor no que escreve, confessa a autora. No início deste ano, lançou pela editora independente Touro Bengala Livros Fictícia uma obra com o namorado, Mario Ivo Dantas Cavalcanti: “Acho que não sou mulher”. As ideias para novos livros não faltam, aliás.

O título é uma coletânea de dois meses de correspondências escarafunchadas do casal, mais de mil e-mails e poemas apaixonados (“minha jane austen mezzo árabe, mezzo germânica/ sem bordas de catupiry/ acabei de achar as chaves/ estavam/ atenção/ debaixo do manara/ ladinho do sofá/ prova maior de que a verdade está na maioria das vezes/ debaixo do nosso nariz/ inda mais depois do sexo oral”, diz o trecho de uma delas).

— A minha razão é defeituosa ainda, para me relacionar é difícil. No mundo de hoje, eu acho que o amor é a coisa mais difícil. Mas, se estou amando, sou uma Cleópatra ( cita “Antônio e Cleópatra”, de Shakespeare ): “Se me ama mesmo, revelai-me quanto/ Pobre é o amor que pode ser contado”.