Em meio a disputa, os 30 anos da morte de Borges serão sem pompa

Viúva e discípulo mostram diferentes visões sobre a obra do escritor argentino

por Janaína Figueiredo

O autor argentino Jorge Luis Borges: morte completa 30 anos - divulgação

BUENOS AIRES — “Vejo a morte como libertação”, disse o argentino Jorge Luis Borges em 1982. Um dos maiores autores latino-americanos, ele morreu há três décadas, em 14 de junho de 1986, de câncer. Mas a data não terá pompa. Responsável pela fundação que leva seu nome, a viúva, María Kodama, defende que mais importante é permitir que “O Aleph”, “Ficções” e “O livro de areia”, entre outros, circulem.

  • A biblioteca de Babel (1944)

    Um dos contos fundadores do universo borgeano, publicado em seu livro mais célebre, “Ficções”, descreve o funcionamento de uma biblioteca virtualmente infinita. Organizadas em salas hexagonais, as estantes contêm todos os livros formados por todas as combinações possíveis de 22 letras, vírgulas, espaços e pontos finais. A ideia da biblioteca infinita inspirou inúmeros outros autores, incluindo Umberto Eco, que homenageou o escritor argentino no romance “O nome da Rosa”, onde há uma vasta biblioteca chefiada por um monge chamado Jorge de Burgos.
  • O jardim dos caminhos que se bifurcam (1944)

    Fã de literatura policial, Borges faz sua própria versão do gênero neste conto, publicado também no livro “Ficções”. O protagonista é um professor chinês que vive na Inglaterra como espião a serviço do governo alemão durante a Primeira Guerra Mundial. A intrincada trama, que só se resolve nas últimas linhas do conto, remete a outro símbolo do universo borgeano, o labirinto. O segredo da narrativa está relacionado à obra de um velho sábio chinês que almejava escrever um romance vasto e complexo e construir um labirinto em que todos os homens se perderiam.
  • O Aleph (1949)

    Neste conto do livro homônimo, o narrador, também chamado Borges, descobre o Aleph, um ponto que concentra todo os pontos do Universo. Quem olha para o Aleph é capaz de ver tudo que se passa em todos os tempos e lugares, simultaneamente, sem distorções. O ponto está localizado no sótão da casa onde vivia a mulher por quem o narrador era apaixonado, que ele continua a visitar regularmente mesmo depois da morte dela. O conto é tão popular que a casa na Rua Garay que serve de cenário para ele se tornou uma atração turística da capital argentina.
  • O sul (1956)

    Incluído na segunda edição argentina de “Ficções”, é descrito pelo próprio Borges como “talvez meu melhor conto”. O protagonista é o bibliotecário Juan Dahlmann, que sofre um corte na cabeça e precisa ser internado, com delírios de febre. A partir desse ponto, a narrativa descreve uma viagem de Dahlmann para o sul da Argentina, onde ele termina por enfrentar um típico “gaucho” em um duelo de facas. Mas Borges deixa no ar se o gesto heróico de Dahlmann é real ou apenas o delírio de um pacato bibliotecário à beira da morte.
  • O outro (1975)

    Publicado na antologia “O livro de areia”, o conto narra um encontro entre Borges e uma versão mais nova dele mesmo. Para o Borges mais velho, o diálogo acontece na cidade americana de Cambridge, às margens do Rio Charles, em 1969. Para o Borges mais novo, no Rio Ródano, na cidade suíça de Genebra, em 1918. O tema do duplo é outro que atravessa toda a obra de Borges. Não por acaso, a conversa entre os dois gira em torno da novela “O duplo”, de Dostoiévski.

Do outro lado, Alberto Manguel, discípulo que lia para o mestre quando ele ficou cego, anuncia: um de seus primeiros atos na Biblioteca Nacional da Argentina, que assume em breve, será exibir manuscritos inéditos do autor. Leia as entrevistas:

MARÍA KODAMA: UMA VIDA DEDICADA AO AUTOR

A viúva Maria Kodama preside a Fundação Jorge Luis Borges - La Nación / La Nación

Há 30 anos, ela foi nomeada sua herdeira universal e desde então se dedica a promover a sua obra. Suporta críticas afiadas de escritores e amigos do homem que se casou com ela poucos meses antes de morrer, numa polêmica cerimônia no Paraguai. María Kodama conheceu Jorge Luis Borges em sua juventude, frequentou durante anos a casa de um dos maiores nomes da literatura latino-americana e, a partir de 1975, passou a acompanhá-lo em viagens ao exterior. A relação foi, desde o início, alvo de questionamentos. Mas nada parece abalar a tranquilidade de Kodama, que, aos 79 anos, diz não sentir o peso da ausência do marido porque, para ela, os dois continuam juntos “através de seus livros”.

Com a mesma serenidade, avisa que está escrevendo um livro para desmascarar os que a atacaram. Kodama preside a Fundação Jorge Luis Borges, em Buenos Aires, onde serão realizadas homenagens ao escritor. Outros eventos acontecerão, por exemplo, no Centro Cultural Kirchner, cujo diretor, o ministro do Sistema Federal de Meios e Conteúdos Públicos, Hernán Lombardi, é fã e estudioso da obra de Borges. Como em todos os anos, a viúva estará na Suíça, onde morou com o escritor até a morte dele. Ao GLOBO ela afirma que seu trabalho “é fazer com que ele continue vivo. Muitos autores muito bons foram abandonados, ninguém se ocupa deles”.

Hoje se completam 30 anos da morte de Borges. Como lida com essa ausência?

Para mim, não é estar sem Borges, é continuar com Borges. Nesse tempo, continuei com sua obra, e através de sua obra estou com ele. É algo maravilhoso. Muitas pessoas me ajudam a fazer esse milagre de continuarmos juntos. Ao organizar palestras e homenagens, sinto sua presença; ele se foi, mas não se foi.

A senhora foi muito criticada, principalmente nos primeiros anos após a morte de Borges.

É a inveja. Mas é muito divertido, porque todas essas pessoas, por sua forma de ser, nunca poderiam ter estado com ele. E ele sentia, por muitas delas, um profundo desprezo. Muitos nem sequer leram sua obra, é patético. No começo foi complicado, mas hoje me divirto muito. O que os deixa loucos é saber que Borges jamais os teria considerado importantes, mas como não podem se meter com ele, se metem comigo. Para mim o importante é o diálogo, mas neste país é muito difícil.

Imagino que não vá querer dar nomes…

( Risos ) Não, mas os tenho bem identificados e estou preparando um livro. É um livro documental, que será terrível. Vou mostrar as coisas como elas realmente são. Não posso deixar que no futuro exista apenas a voz dessa meia dúzia de pessoas. Vou dizer a verdade, com documentos.

Qual é seu objetivo com esse livro?

Quero deixar clara a verdade, sou um ser humano digno de respeito. Amei um homem extraordinário, fui amada por ele, e 30 anos após sua partida continuo ao seu lado.

Como foi seu primeiro encontro com a obra de Borges?

Quando tinha uns 10 anos encontrei uma revista na minha casa e li a seguinte frase: “ninguém o viu desembarcar na unânime noite”. Pensei, “meu Deus, o que é isso?”. Cativou-me para sempre, senti uma força incrível nesse conto (“As ruínas circulares”). E veja que coisa maravilhosa. Há dois anos encontrei uma entrevista dada por Borges na qual ele conta, em relação a esse conto, que nunca escreveu algo com tanta intensidade em sua vida.

Que lembranças a senhora tem dele?

Muitas. Lindas lembranças, nossas viagens... Fomos ao Egito e a tantos outros lugares. Fomos ao Brasil, e me lembro de uma visita, acho que foi a São Paulo, que foi impressionante. Ele deu uma palestra num galpão imenso, lotado. As pessoas sacudiam as grades porque queriam entrar, e eu pensava “meu Deus, vão matá-lo”. Era um fanatismo total.

E como ele lidava com esse fanatismo?

Borges era muito tímido, tinha uma voz muito baixinha. Era muito doce, tinha muito senso de humor e paciência. Era um ser fascinante.

A obra de Borges tem cada vez mais seguidores no mundo...

Sua obra foi consagrada em vida. Mas meu trabalho é manter essa obra viva e conquistar novos leitores. Muitos autores bons foram abandonados, ninguém se ocupa deles. Deve existir uma pessoa que faça isso e, no caso de Borges, sou eu. Você precisa ter amado loucamente uma pessoa e sentir que foi amada loucamente por essa pessoa para dar sua vida por ela. Eu dou a minha vida por Borges.

ALBERTO MANGUEL: TRIBUTO A SEU MESTRE

Alberto Manguel, discípulo de Jorge Luis Borges - Ana Obiols / divulgação/Ana Obiols

Ele era um jovem vendedor da livraria Pygmalion, na década de 1960, quando foi os olhos de Jorge Luis Borges, na época diretor da Biblioteca Nacional e já cego. Hoje, prestes a assumir o mesmo cargo, o escritor Alberto Manguel assegura que não foi fácil aceitar o pedido do governo Mauricio Macri. Ao GLOBO, Manguel, que nas próximas semanas trocará Nova York por Buenos Aires, afirmou que “assumir um posto tão importante, à sombra de Borges, é uma decisão radical”. Uma de suas primeiras iniciativas, conta, será uma mostra sobre seu mestre, como parte das homenagens pelos 30 anos da morte de Borges. A exposição incluirá manuscritos inéditos e livros com anotações do escritor. Para Manguel, “depois de Borges, todo leitor lê sob sua luz, e todo escritor escreve sob sua sombra”. Em tom sereno e tentando evitar polêmicas, ele disse saber que será parte do livro que María Kodama está escrevendo, mas garantiu que o trato entre os dois “é cordial”.

O senhor ocupará o cargo exercido por Borges entre 1955 e 1973.

Foi uma grande surpresa, nunca tinha pensado nessa possibilidade. Escrevi durante décadas sobre bibliotecas, livros e leitura, mas nunca imaginei que entraria no campo de batalha. Levei tempo para decidir se aceitava, tinha acabado de me mudar para Nova York. Assumir um posto tão importante, à sombra de Borges, era uma decisão radical. Decidi aceitar, sobretudo para ver se é possível colocar em ação as diferentes ideias que tenho sobre o que pode ser uma biblioteca.

Borges é uma inspiração?

Borges foi, acima de tudo, um grande leitor, e como tal tinha a ideia da biblioteca como forma de ordenar o universo. Mas Borges era uma figura simbólica, o trabalho de bibliotecário quem executava era o subdiretor. Eu não sou Borges (risos), não poderia ser símbolo da biblioteca.

Como foi seu contato com Borges?

Nunca foi um contato íntimo, fui uma das várias pessoas às quais Borges pediu que lessem para ele. Nos conhecemos no começo da década de 1960, e durante mais de três anos fui todas as noites à sua casa. Também fui com ele a diferentes lugares, mas penso que Borges tinha uma ideia muito vaga de quem era esse rapaz que lia para ele e o acompanhava a lugares.

Hoje Borges é tão lido como quando era vivo...

A obra de Borges continua vigente e adquiriu um prestígio de clássico, que não teve até o começo dos anos 1980. Mas não acredito que Borges seja tão lido hoje. Há uma diferença entre o prestígio de um escritor e o número de exemplares que vende. É verdade que Borges tem influência enorme sobre todos os escritores, mesmo sobre os que não o leram. E, acima de tudo, entre os leitores. O que Borges fez foi esclarecer o papel do leitor e o enorme poder que temos como leitores. Como escritor, deu aos escritores um modelo completo da literatura. Em muitos de seus textos, Borges propõe as infinitas variações que pode ter um texto literário.

Após a morte de Borges, sua viúva passou a ser a guardiã única de sua obra. Qual é a sua opinião sobre o papel de Kodama?

Não posso ter uma opinião sobre a pessoa com quem Borges decidiu se casar. Seria impertinente. Borges tinha um caráter muito forte, ninguém, jamais, o obrigou a fazer algo que não quisesse.

Kodama está escrevendo um livro sobre seus inimigos...

Sei que estou nesse livro, porque María me contou. Ela também faz acusações contra mim. Da última vez que a vi, em fevereiro, nosso trato foi cordial. Preciso do apoio de María para as muitas coisas que faremos na biblioteca sobre Borges.

E o que o senhor fará?

Dentro de algumas semanas vamos inaugurar uma grande exposição, com manuscritos. Dois bibliotecários especialistas em Borges descobriram os livros da biblioteca que têm anotações feitas por ele. Encontraram, ainda, um escrito inédito com um final alternativo para “O tema do traidor e o herói”. Borges escrevia nos livros que lia, e foram encontrados vários. Estamos armando um catálogo com textos que pedimos a vários escritores sobre Borges. E vamos organizar um ciclo de cinema.