Cultura

Livro de Garth Risk Hallberg sobre NY nos anos 1970 chega ao Brasil

Em romance de estreia com mais de mil páginas, escritor americano traça panorama ambicioso da cidade
O escritor Garth Risk Hallberg Foto: ALEX WELSH / NYT
O escritor Garth Risk Hallberg Foto: ALEX WELSH / NYT

RIO - Nascido na Lousiana, em 1978, Garth Risk Hallberg sempre foi fascinado pela Nova York da segunda metade dos anos 1970, época em que a decadência da megalópole contrastava com a força da cena artística local, sobretudo nos templos punk CBGB e Max’s Kansas City. Em 2006, quando já vivia em Nova York e compartilhava com os vizinhos o luto da era pós-11 de Setembro, Hallberg se dedicou a escrever um romance que captasse o caos e a energia do passado recente da cidade. Quase dez anos depois, o resultado foram as mais de mil páginas de seu romance de estreia, “Cidade em chamas” (Companhia das Letras), lançado ano passado nos EUA. O livro acompanha músicos punk, jovens aspirantes a artistas e ativistas, conectados pela investigação de um crime misterioso. Nesta entrevista, Hallberg compara seu livro à tradição de grandes painéis sociais, que vem desde Balzac e Dickens até hoje, quando foi absorvida por séries de TV como “The wire” e “Breaking bad”: “Há uma fome por histórias que deem ao público uma imersão na vida dos personagens”, diz.

Por que ambientou “Cidade em chamas” na Nova York dos anos 1970? O que a cena punk significou naquela época?

Um pouco depois do 11 de setembro, pedi demissão do trabalho e decidi me dedicar à escrita. Se o mundo acabasse, era uma forma mais digna de passar o resto do meu tempo. Eu vivia em Washington, mas ia muito a Nova York, e a sensação era que a vida da cidade ainda não tinha voltado ao normal. Nas ruas, nos bares, no metrô, havia um clima de abertura, mas também de vulnerabilidade, como se a ferida não tivesse cicatrizado. Em 2003, quando eu estava procurando apartamento em Nova York, surgiu uma música de Billy Joel no meu iPod, uma música sobre a Nova York caótica e vulnerável dos anos 1970. E pensei: estamos vivendo isso de novo. Nos anos 1970, a cidade passou por um período de grandes reformas, que a tornaram mais segura, por um lado, mas também um pouco menos excitante. Tudo estava à flor da pele, e a energia punk tentava manter vivo aquele espírito de liberdade.

“Cidade em chamas” se alinha a uma tradição de romances de fôlego com painéis sociais. Quais foram seus modelos quando concebeu o livro?

Gosto muito de uma frase do crítico Greil Marcus sobre o disco “Born to run”, de Bruce Springsteen: “é o som de um Chevette 1957 turbinado por combustível feito de discos dos Crystals”. É bonita a ideia de, em vez de correr da influência, correr com ela. “Cidade em chamas” se relaciona com três tradições de romances de fôlego. Uma é o romance realista do século XIX, de Dickens ou George Eliot. Podem parecer antiquados, mas têm muito a dizer sobre nosso tempo, pela forma como lidavam com a avalanche de dados da realidade, buscando conexões e harmonias. Também me atrai o romance longo modernista, como os de Robert Musil ou James Joyce, pela maneira como mergulham na consciência dos personagens. E amo o romance longo pós-moderno, como os de Don DeLillo e Roberto Bolaño. Muitos escritores escolhem um time, mas gosto de pensar que aprendo um pouco de cada um.

Há alguns anos, você publicou um ensaio sobre a popularidade de romances longos hoje, quando se fala muito em “deficit de atenção” do público. Qual é o apelo de um romance longo hoje?

Para mim, a conexão entre escritores de épocas tão diferentes como Dickens, DeLillo, Eliot e Bolaño é o desejo de um romance que abrace tudo. Um desejo irrealizável, claro, mas que traz consigo uma grande liberdade. Trabalhei anos num romance enorme que todo mundo considerava impublicável por mil motivos: o declínio da atenção do público, a decadência do romance, o fim das livrarias, a crise financeira, a transição para o digital etc. Enquanto escrevia, eu me espantava com o surgimento ocasional de grandes romances que desafiavam tudo isso, exigindo a atenção do leitor, como “O pintassilgo”, de Donna Tart, ou “As benevolentes”, de Jonathan Littel. Eles provavam que há uma fome por histórias que deem ao público uma imersão na vida dos personagens. Uma narrativa que se desenrola por 25 ou 30 horas é capaz de alcançar recantos da realidade humana como nenhuma outra forma artística.

Outro tipo de narrativa que se desenrola por 25 ou 30 horas é a série de TV moderna. Críticos apontaram semelhanças entre a estrutura do seu livro e a de séries como “The wire” e “Breaking bad”. Quais são as relações entre a literatura e essa nova narrativa que emergiu na TV?

Eu me interesso pela maneira como as séries, especialmente “The wire”, resgatam técnicas de escritores realistas como Dickens. David Simon (criador de “The wire”) claramente não tinha problema com isso, pelo contrário, ele entendia que a técnica de Dickens, em seu apetite por tudo e sua anatomia social que disseca as vidas de vários personagens, tinha muito a dizer ao público atual. Mas não é que eu tenha me inspirado nas séries de TV, eu tentei reclamar de volta para a literatura um conjunto de ferramentas que a TV adotou com sucesso. Mas o romance faz coisas que a TV não é capaz de fazer. Ele explora a beleza da escrita e leva o leitor mais fundo na consciência dos personagens.