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‘Minha luta’: a discussão além de liberar ou proibir
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 22/02/2016
Em sua coluna dessa semana, Roney Cytrynowicz faz uma reflexão sobre a publicação do livro-manifesto nazista

O acirrado debate jurídico em torno de liberar ou proibir a edição de Minha luta é consequência dos terríveis significados que a presença deste livro e de seu autor têm na história do século 20. É um texto que sintetiza as ideias do nazismo e cuja publicação e circulação incitou diretamente, por meio da ação do seu autor, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a ocorrência do Holocausto e a morte de mais de 40 milhões de pessoas entre 1933 e 1945 (incluindo os crimes do programa de “eutanásia”).

Em sociedades comprometidas com a democracia e a memória dos crimes nazistas, especialmente em países que sofreram diretamente a ocupação nazista e para os grupos que foram vitimados, é evidente que Minha luta não é apenas um livro, mas um símbolo, talvez o símbolo máximo, do nazismo e de seus crimes.

Conforme Hannah Arendt, o Holocausto e os crimes nazistas foram crimes contra a Humanidade, crimes contra a diversidade humana e a própria ideia de Humanidade. Portanto, a discussão não é apenas sobre um livro, mas sobre um texto que incita ao ódio, ao racismo, à destruição do diferente, à guerra, à conquista e à subjugação totalitária de outros povos, considerados inferiores. Esta é a visão de história e de sociedade expostas no livro. Foram editados dezenas de outros livros nazistas, mas sem dúvida este se tornou o nefasto símbolo-mor.

Ver Minha luta na vitrine de uma livraria, e o nome de A.H. como autor, é como voltar a 1933 e ver a propaganda nazista circulando livremente. Ofende a memória dos assassinados no Holocausto, ofende qualquer pessoa ou grupo comprometido com a democracia, a diversidade, os direitos humanos, ofende afro-brasileiros, ofende imigrantes e seus descendentes em geral, LGBTs, ciganos, Testemunhas de Jeová, católicos, protestantes (recordando, inclusive, os que se opuseram ao nazismo). Ofende pessoas com deficiências as mais variadas, lembrando que o programa “eutanásia” exterminou alemães com as mais diversas doenças e o que considerava deficiência física, entre eles epilépticos, cegos, surdos, pessoas com lábio leporino, pessoas com síndrome de Down, pessoas com doenças mentais e assim por diante. Para engendrar um mundo ariano, o reich de mil anos, os nazistas destruíam tudo e todos que não se encaixavam.

A despeito de o Brasil ter participado diretamente da Segunda Guerra Mundial com a FEB, a memória da Segunda Guerra Mundial e do nazismo é fraca no Brasil e isso gera certa indiferença, ao tema, tratado como uma “questão dos judeus”.

Se, de um lado, não faz sentido, tecnicamente, impedir a circulação de qualquer livro no mundo digital, por outro o centro da discussão não deve ser apenas entre liberar ou proibir, entre os princípios da liberdade irrestrita e os que aceitam alguma restrição, como no caso da expressão de racismo. Os argumentos de juristas e advogados dos dois lados têm fundamentação e soam convincentes e uma proibição formal aumentaria a circulação “ilegal”.

Assim, uma vez que cópias do texto integrais circulam livremente, como sempre circularam, e não há tecnicamente como impedir isso, então o desafio é “como publicar”. Para isso, entendo que o livro deve ser transformado em documento histórico. Ou seja, não se trata de publicar o livro Minha luta, mas de publicar um livro que contém o documento histórico com este nome. Não é um jogo de palavras. É uma distinção fundamental. Minha luta deixa de ser o título e A.H. deixa de ser o autor do livro e a edição passa a ser a de um livro que apresenta o documento e a história em torno dele.

Um jornalista, defendendo o princípio da liberação, comparou a liberdade de editar e ler a visitar os campos de extermínio. Mas o que visitamos em Dachau ou Auschwitz, por exemplo, não são os campos de concentração e de extermínio, mas o museu e o memorial do campo que abrigam os antigos campos, devidamente “museologizados”, ou seja, mediados por exposições e painéis que explicam o que se vê. Até porque o que se vê é terrivelmente banal. Uma câmara de gás é uma sala fechada com um chuveiro em cima, mas deste chuveiro saiu o gás que assassinou milhões de pessoas. Então, como em Minha luta, a questão não é o que se lê e o que se vê. A questão é entender o que foi a ideologia do racismo e do extermínio, como o nazismo ascendeu ao poder e assim por diante, e não apenas visitar a câmara de gás, o que seria apenas uma “visita fetiche”.

Ou seja, deve-se mediar a visita e a leitura, deve-se oferecer ao visitante e ao leitor instrumentos que expliquem. No caso da edição, seria um livro de estudo, com notas e comentários, entendendo, claramente, que não existe uma leitura do documento Minha luta que não deva ser devidamente contextualizada pela história da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. O livro é um documento desta história e não, jamais, uma versão da história a ser lida, como se houvesse uma versão nazista da história que estudantes e outros devem conhecer para saber os supostos “dois lados” desta história.

Mas se esta edição for feita, é razoável explorá-la comercialmente? Não há reposta simples e esta questão e às complexas ambiguidades e contradições que ela embute. Por isso, seria desejável que o livro tivesse uma edição pública de referência, por exemplo de uma universidade, com todos os prefácios, notas e cuidados. Este livro poderia ser distribuído a bibliotecas e servir aos que querem ler para pesquisa e informação ou curiosidade.

Assim, diante da impossibilidade técnica de impedir a circulação do texto, é fundamental o imperativo ético de cuidar de sua edição como documento histórico, para que a sua edição e circulação não seja jamais convite ou incitação às ideias que levaram o mundo à guerra e ao Holocausto. Um texto que esteve no epicentro de uma guerra que matou mais de 40 milhões de pessoas. Mais importante do que a batalha judicial, entre liberar ou proibir, é lembrar de Auschwitz e do extermínio de milhões de pessoas, como crime contra a Humanidade, e entender que esse livro é uma síntese das ideias que levaram a isso.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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