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Crítica: Contos e ensaios sobre tempos de barbárie

Grossman transporta fardo da História, nada desprezível, para os contos de 'A estrada'
Vassili Grossman na cidade alemã de Schwerin, em 1945, com o Exército Vermelho Foto: Divulgação
Vassili Grossman na cidade alemã de Schwerin, em 1945, com o Exército Vermelho Foto: Divulgação

RIO — O russo Vassili Grossman tornou-se mundialmente conhecido por “Vida e Destino” (Alfaguara), romance histórico considerado o “Guerra e Paz” da Segunda Guerra. Em “A estrada”, coletânea de contos, ensaios e papéis dispersos, somos apresentados a uma face menos conhecida da sua literatura. Em vez da grandeza épica e das longas descrições de batalhas, das incontáveis camadas narrativas e do excesso de personagens, temos aqui um autêntico miniaturista, continuador da poética das formas breves que notabilizou os compatriotas Tchekhov e Babel.

Boa parte do interesse pela ficção de Grossman — os contos são maioria em “A estrada” — está na sua sensibilidade para figurar o “aqui e agora” histórico, a verdade profunda da existência em um regime totalitário. O enlaçamento entre indivíduo e História é um dos temas centrais da sua literatura. A própria trajetória de Grossman se confunde com momentos decisivos do século XX. De origem judaica e ucraniana, ele foi contemporâneo de pogroms e da Revolução Russa. Sobreviveu aos expurgos de Stalin. Alistou-se no Exército Vermelho, destacou-se como correspondente de guerra. Sua mãe foi assassinada pelos nazistas. Nos anos 1960, o romance em que havia trabalhado por quase dez anos, “Vida e Destino”, foi confiscado por autoridades soviéticas.

Grossman transporta esse fardo da História, nada desprezível, para os contos de “A estrada”. Mas não se trata, aqui, de oferecer um testemunho: na sua escrita, as principais adversidades são aquelas enfrentadas pelo outro. O ponto de contato entre as narrativas, redigidas ao longo de mais de três décadas, é o tratamento das vicissitudes de “pessoas comuns” — camponesas, médicos, soldados — em uma das épocas mais assustadoras para se estar vivo. Porém, mais que um retrato da realidade soviética, as narrativas de Grossman são criações artísticas notáveis. Ele evita, sempre que possível, as patriotadas e os clichês que caracterizavam a linguagem do “realismo socialista”, e passa longe do lirismo kitsch quando se trata de descrever a barbárie. São nítidos o cuidado com a perspectiva, especialmente nos contos envolvendo animais, e a opção por soluções incomuns ao abordar temas politicamente delicados.

Mas é nos ensaios que a prosa de Grossman se mostra mais expressiva. Escrito em 1944 como um dos capítulos do “Livro Negro”, conjunto de relatos sobre o massacre dos judeus na Polônia e na União Soviética, “O inferno de Treblinka” é uma descrição impressionante da vida no campo de concentração. Grossman entrevista sobreviventes e relata a visita ao local onde o campo havia funcionado: um descampado coberto de flores, que poderia passar por bucólico não fosse uma peculiaridade sinistra. A terra, “insondável e inchada”, ondulava ali como o mar, “expelindo os ossos e pertences dos assassinados”, como se ela se recusasse a “ser cúmplice dos crimes cometidos”.

A visita ao campo o afetará profundamente. A impossibilidade de superar o que viu é abordada no ensaio “A Madona Sistina”, de 1955, um relato da exibição, feita em Moscou, do quadro de Rafael tomado pelos soviéticos como espólio de guerra. Após observar a pintura, Grossman experimenta uma “confusão de sentimentos” que nenhuma manifestação artística, nem a literatura de Tolstoi ou a música de Beethoven, havia lhe causado. Depois de tudo o que tinha visto, experimentar o sublime era como pisar na terra fofa e ondulante de um campo de concentração abandonado.

*Felipe Charbel é professor de Teoria da História na UFRJ