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Lírica, bíblica, existencial: Aos 80, Adélia Prado reflete sobre o mundo

Escritora reune obra poética com a nova antologia ‘Poesia reunida’

Adélia Prado, que vive reclusa em Minas, está no Rio para lançar um livro de poesia
Foto: Mônica Imbuzeiro
Adélia Prado, que vive reclusa em Minas, está no Rio para lançar um livro de poesia Foto: Mônica Imbuzeiro

RIO - No dia 9 de outubro de 1975, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no “Jornal do Brasil” elogiando uma poeta de Divinópolis, professora, mãe de cinco filhos, cujos versos ainda inéditos acabavam de cair em suas mãos: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Era Adélia Prado, que naquele mesmo ano conseguiu publicar o primeiro livro, “Bagagem”. Desde então já lançou outros 15, teve livros traduzidos para o inglês e o espanhol e inspirou um sem-número de teses acadêmicas, trabalhos que costumam tatear a aproximação feminina e religiosa de sua obra. Às vésperas de completar 80 anos, Adélia ganha nova antologia de sua obra poética na edição de luxo “Poesia reunida” (Record). Para celebrar a data do aniversário, em 13 de dezembro, O GLOBO propôs à poeta que algumas perguntas desta entrevista — na qual se mostra contrária ao movimento feminista que ganha força nas ruas nos últimos meses e, principalmente, contra o aborto — fossem inspiradas em seus próprios versos.

Dói-lhe a cabeça aos 80 anos?

Quando fiz o verso doía mais. Muitas coisas se amansam com a velhice.

A senhora ainda cavuca abacaxis apodrecidos/ como quem procura um veio são?

Cada vez mais. E não só abacaxis. Cavuco mais em mim mesma.

O que ainda vê embaixo da saia da poesia?

O mesmo que vi da primeira vez: sedução, uma promessa fortíssima e maravilhosa de que a vida não morre e o que chamamos beleza. É pálido reflexo das maravilhas que nos aguardam.

No seu armário há mais tempo ou traça?

O vestido que eu amava virou poesia. Me desfaço com mais facilidade dos meus apegos. Olhar as coisas poeticamente nos ajuda. Elas se vão, fica a poesia, que não morre.


Adélia Prado em 1976
Foto: José Santos / Arquivo
Adélia Prado em 1976 Foto: José Santos / Arquivo

Não é a primeira edição de sua obra completa. Em 1991, você não gostou muito, reagiu como se fosse uma “homenagem póstuma” em vida. E agora, como recebe essa edição?

A primeira coisa que uma obra completa me lembra é: somos mortais. Um copo de plástico dura mais que a mais longa vida. Diferentemente de 1991, quando esperneei um pouco, recebo agora a edição sem estridências, feliz e agradecida. Tem ainda um atenuante joia a meu favor, dois poemas novos. Assim escapo (Adélia preferiu não mostrá-los). Fica mais difícil me tornar veterana. Espero morrer caloura, como sempre me vejo.

Por que a poesia ainda é vista como um patinho feio entre os gêneros literários, principalmente pelas editoras?

A poesia como patinho feio é culpa da nossa “pátria educadora” e de longo tempo, onde a literatura é tratada como descartável. Faz parte do baixo clero das escolas, onde mal vicejam educação artística, religiosa e até educação física. Não merecem participar música, teatro, dança, nada que nos faça descobrir que somos humanos, necessitamos de beleza e transcendência, que precisamos de ar. Antes de nos preocuparmos com a multiplicação de feiras literárias e bienais, urge cuidarmos do feijão com arroz do estudo básico, que só acontece no primário bem feito. Ler, escrever, interpretar.

A senhora melhora quando chove?

Sim. Fico adolescente, ornada de tanajuras.

Navios ou caligrafia alheia: o que ainda lhe causa grande admiração?

Navios, aviões, não me canso de vê-los. Como é possível que naveguem e voem?

No poema “Deve ser amor” a senhora escreve que “É preciso fé/ até para cortar as unhas”.

Sem fé não se corta unhas, não se toma banho e não se peleja. No piquenique dificultoso da vida há muita beleza e alegria. O caminho é áspero e perigoso, com pousadas incríveis.


Adelia Prado em 1984
Foto: Arquivo / Arquivo
Adelia Prado em 1984 Foto: Arquivo / Arquivo

Em “A face de Deus é vespas”, a senhora escreve: “Queremos ser felizes como os flagelados da cheia, que perderam tudo/ e dizem-se um aos outros nos alojamentos: ‘Graças a Deus, podia ser pior’”. A qual imagem a tragédia ambiental de Rio Doce a remete?

Cataclismos funcionam às vezes como purgativos. O de Mariana, somado ao turbilhão de horrores que presenciamos diuturnamente no Brasil e no mundo, soam para mim como anúncios de uma calamidade maior (a lama do Rio Doce é simbólica). O silêncio que sucede aos desastres, quem sabe, nos fará ouvir. Ouvir o quê? A resposta, ou ao menos a pergunta pelo sentido da vida. Não vejo sinais para otimismo, a não ser o que a fé oferece quando convoca a esperança no auxílio divino. Em meio a tanta treva, aguardo um renascimento na política, na igreja — como no tempo de São Francisco — de quem ele foi o grande arauto. Foi horrível a capa do “Charlie Hebdo”. O que quiseram dizer com um corpo furado de balas que vertia champagne? Não é voltando imediatamente a restaurantes e cafés e dizendo “não temos medo” que responderemos ao fogo. Agora somos chamados a um recolhimento, a um silêncio que nos permita ouvir atentamente, encontrar e admitir nossa culpa. Há necessidade de oração, conversão, volta evangélica para a vida interior, para valores esquecidos, desaparecendo sob lama, sangue e cinza. Uma comoção maior, que não se acabe com flores e velas sobre os cadáveres e fotografias sentimentais sobre filas de refugiados. Não sei o que fazer. Só uma certeza me acode: devo começar em meu coração, dentro da minha casa, a radical mudança para o amor, o perdão, a tolerância, para a atenção real para o meu próximo, o que, segundo Jesus, resume a lei e os profetas.

O movimento feminista, que cada vez ganha mais força nas ruas, reunindo milhares de pessoas em marchas, já sendo chamado de “primavera das mulheres” a anima?

Não. Homicídio tornou-se uma palavra fraca. Por que “feminicídio”? Me lembra bandeiras, discursos irados, passeatas. O assassinato de mulheres é horrível não porque é de mulheres, mas porque a mulher é também uma pessoa. Qualquer assassinato é hediondo até prova em contrário. Enquanto nos distraímos com bandeiras e neologismos, o crime segue fagueiro e impune contra homens, mulheres, crianças, velhos, povos, contra a Humanidade. Dizer “feminicídio” não muda a questão. A revolução é de outra ordem. É moral, educacional, religiosa, civil, espiritual. Supõe um país que se dê ao respeito em suas instituições, um povo educado, igrejas não mercenárias. Onde está o líder civil ou um santo que nos leve a verdes pastagens e água pura?

Qual sua opinião sobre os projetos de lei que criminalizam todo tipo de aborto, como o PL 5069?

“Não matarás”. Salvo se em legítima defesa. Como tornar legal o aborto se a criança, inocente, incapaz, dependente da mãe para viver também é titular do direito inalienável à vida? Qual vida vale mais? É bom não esquecer: a vida de qualquer um é um valor em si mesma. Se a gravidez é uma ameaça real à vida da mãe, instala-se uma situação das mais terríveis e complicadas que conheci até hoje. Faz-se aborto por miséria, desespero, vergonha e egoísmo na maioria das vezes. As leis civis e religiosas se turvam diante deste problema, antes de tudo moral, de profunda complexidade e consequência. Necessita para sua resolução muita coragem e discernimento, que nem sempre andam juntos. As legislações, reconhecendo a natureza dramática do assunto, tentam contorná-lo para resolvê-lo. A letra é fria e muitas vezes mata. Apelo ao último juiz para o qual só existe um tribunal, o da consciência. Será sempre trágico agir contra a luz desse juiz. Não há, fora da minha consciência, quem me proíba ou me libere para o aborto. Obedecer a lei — para o sim ou para o não — nunca é garantia de paz interior. Decidir pela vida é obrigação do legislador. Considero “Meu corpo, minhas regras” uma empáfia, militância, cunha para extrair variadas vantagens, inclusive a tentativa de descartar a consciência com aval político.