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Almanaque erótico português do fim do século XIX chega ao Brasil

Raridade entre colecionadores, “O pauzinho do matrimônio” tem autoria misteriosa

Do baú. Edição brasileira tem a mesma capa da original, ilustrada por um dos maiores caricaturistas portugueses
Foto: Divulgação
Do baú. Edição brasileira tem a mesma capa da original, ilustrada por um dos maiores caricaturistas portugueses Foto: Divulgação

Dedicado “aos caturras”, o almanaque traz uma advertência peculiar logo no início: “Vão gritar muito contra o pauzinho . Dirão que é imoral, que não tem graça e há-de até parecer-lhes perigoso. E contudo serão eles próprios, os pudicos, os castos, que hão-de comprar o livro e lê-lo de uma assentada”.

Foi exatamente o que aconteceu. No final do século XIX, circulou por baixo das mesas dos portugueses um livrinho de humor erótico, tintas surreais e ilustrações fantasiosas chamado “O pauzinho do matrimônio”. De autoria (quase) misteriosa e publicação independente, seguia o modelo dos almanaques de costumes característicos do período, com anedotas, cantigas, novelinhas, piadas e adágios sortidos, só que com temas bastante indecorosos para a época — tanto é que a Biblioteca Nacional de Portugal fez vista grossa ao fenômeno literário marginal e não guardou um exemplar sequer.

Seus volumes foram disputados a tapas por colecionadores. E foi graças a um deles, o historiador e bibliófilo António Ventura, que foi possível lançar a versão de “O pauzinho do matrimônio” que acaba de sair no Brasil, pela Tinta da China, em edição integral.

— A tradição dos almanaques, que em Portugal começou ainda no século XVIII, com os Almanaques da Real Academia das Ciências de Lisboa, e prosseguiu até ao século XX, decaiu devido ao aparecimento de novos meios de comunicação que os tornaram obsoletos e inúteis. O “Pauzinho” é um almanaque, mas com propósitos diferentes. Não pretende coligir informações úteis, calendarizadas ao longo do ano, mas sim fazer humor, crítica, dispor bem o leitor — anima-se António.

Capa de "O pauzinho do matrimônio", da editora Tinta da China Foto: Divulgação
Capa de "O pauzinho do matrimônio", da editora Tinta da China Foto: Divulgação

Dono de uma fabulosa coleção de livos raros e proibidos em Portugal (há outras edições suas que a Tinta da China já pôs no prelo), António acredita que a autoria d’ “O pauzinho...” seja do mesmo autor de suas ilustrações, Rafael Bordalo Pinheiro.

Nascido em Lisboa em 1846, Rafael era ator e ilustrador. Em Portugal, fundou jornais satíricos como “O calcanhar de Aquiles” e “O binóculo”. Entre 1875 e 1879, viveu no Brasil, onde colaborou com o jornal “O Mosquito” e fundou os também satíricos “Pst!” e “O Besouro”. É considerado até hoje um dos maiores caricaturistas portugueses.

— Quase todas as publicações de cariz erótico que começaram a ser impressas em Portugal a partir do século XIX não apresentam o nome do autor nem do editor, por serem contrárias à moral vigente. Os locais de impressão são fictícios, como Londres, Madri, até o Vaticano... O mesmo sucede com este almanaque. Sabemos que o seu autor foi Rafael Bordalo Pinheiro através dos seus biógrafos que cito no estudo que acompanha esta reedição.

“O SAXOPÊNIS”

Com capítulos de nomes como “Caralhofobia”, “O saxopênis” ou “A arte de gozar e fazer gozar”, o divertido compêndio de dicas e gracejos é mais atual do que nunca, defende o bibliófilo:

— Desde a Idade Média, surgiu uma produção erótica e pornográfica que coexistiu com a cultura oficial. Foi uma espécie de rio subterrâneo, discreto, pouco visível, mas que não pode ser ignorado. O mais curioso é que muitas vezes escritores consagrados, sérios, cultivaram paralelamente esse tipo de literatura, de forma mais discreta. Além de ser uma raridade bibliográfica, também se pode acrescentar outra virtualidade de “O pauzinho...”: o seu bom humor. Numa época em que o riso e o sorriso escasseiam…