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Em 'Trilha', Leonardo Fróes reúne poemas da vida em meio à natureza

Antologia cobre cinco décadas de carreira do poeta, que trocou Rio por sítio em Secretário

O poeta Leonardo Fróes no seu sítio em Secretário, distrito de Petrópolis
Foto: Mônica Imbuzeiro
O poeta Leonardo Fróes no seu sítio em Secretário, distrito de Petrópolis Foto: Mônica Imbuzeiro

RIO - Quem passa pela estrada principal de Secretário, distrito de Petrópolis a 100 quilômetros do Rio, vê de longe na serra uma faixa de vegetação densa cercada de pasto. A mata preservada está no sítio do poeta e tradutor Leonardo Fróes, de 74 anos, que se mudou para lá no início da década de 1970, depois de largar a vida no Rio. Nos anos seguintes, enquanto escrevia e publicava os livros que lhe garantiram uma posição singular na poesia brasileira contemporânea, ele se dedicou a reflorestar o terreno de 50 mil metros quadrados do qual conhece cada planta, pedra e animal.

Plantas, pedras e animais são figuras constantes na obra de Fróes, que volta às livrarias com o lançamento da antologia “Trilha” (Azougue Editorial). O livro cobre toda a carreira do poeta, da estreia, em 1968, até três inéditos de 2014 e 2015. Nesse percurso de quase cinco décadas, trocou um cargo de prestígio numa editora carioca e um apartamento confortável no Arpoador pela vida na serra ao lado da mulher e, mais tarde, dos dois filhos. Reformou e ampliou com as próprias mãos a casa de madeira no sítio, aprendeu os nomes das árvores e o cultivo da terra. Encontrou, assim, um novo entendimento da poesia.

— Digo, brincando, que meu melhor poema é o sítio. Hoje minha concepção de poesia é muito mais vasta do que o texto escrito. Construir a casa, plantar e cuidar das árvores, toda a vida passou a ser poética — diz Fróes, numa conversa de fim de tarde no sítio de Secretário.


Capa de “Trilha”, de Leonardo Fróes
Foto: Divulgação
Capa de “Trilha”, de Leonardo Fróes Foto: Divulgação

Essa concepção de poesia não significa uma exaltação da “vida simples”, nem a mera descrição de plantas, pedras e animais. Fróes parte da observação atenta da natureza para refletir sobre a identidade do homem e seu lugar no mundo. Um de seus poemas mais conhecidos, “Justificação de deus” — do livro “Sibilitz”(1981) que ganhará nova edição em breve pela Chão da Feira —, mobiliza imagens que parecem saídas do cotidiano do sítio. Deus aqui é “uma casa de marimbondos na chuva”, “uma árvore na qual entrei certa vez/ para me recarregar de energia/ depois de uma estrondosa derrota”.

— A minha não é uma “poesia da natureza”, não descreve paisagens, não é idílica. É uma poesia inquieta — diz Fróes.

Inquietação presente já nos primeiros livros, “Língua franca” (1968) e “A vida em comum” (1969), publicados quando ainda vivia no Rio. Ele chegou à cidade aos 9 anos, com a família, vindo de Itaperuna, onde nasceu, em 1941. Aos 20 anos, mudou-se a Nova York para trabalhar em uma editora. De lá viajou para a Europa e viveu em Paris e Berlim antes de voltar ao Rio, em 1966. Cosmopolita e bem-sucedido, deixava transparecer nos poemas de juventude, porém, uma sensação de deslocamento em relação à vida na cidade (“procuro uma emoção bem simples/ um rosto/ no qual me reconheça”).

A decisão de deixar o Rio, alimentada por muito tempo, foi precipitada por sua prisão, em 1970. No momento mais pesado da ditadura, foi detido por quatro dias sem explicação. Depois de solto, mudou-se com a mulher, Regina D’Olne, para Petrópolis. Logo instalaram-se no sítio, que era então pouco mais que uma casa velha no meio do mato, sem luz nem água encanada, e o reconstruíram aos poucos. Quando as crianças precisaram ir à escola, a família passou a se alternar entre Secretário e uma casa em Petrópolis, trajeto que Fróes faz até hoje. A relação do poeta com o sítio é mostrada no recente documentário “Um animal na montanha”, dirigido por Alberto Pucheu, Gabriela Capper e Sergio Cohn.

Em seu terceiro livro, de 1973, Fróes brinca com a mudança intempestiva para a serra já no título: “Esqueci de avisar que estou vivo”. Os primeiros poemas escritos no sítio marcam uma inflexão, como em “Pastoreando um bruxo urbanizado”, uma provocação ao leitor citadino: “Interpele o mato a brotação a seiva/ que borda obras custosas de artesão/ sob os elos amenos do jardim”.

— Os primeiros livros refletem minha experiência urbana, são poemas em desacordo com os edifícios, o trânsito, o asfalto. Não quer dizer que no sítio eu tenha me alienado: continuo a discordar da cidade, do país, da política. Mas passei a fazer uma poesia afirmativa.

No sítio, Fróes se sustentava fazendo traduções. Hoje, é um dos principais tradutores de poesia e prosa em inglês e francês no país. Já verteu de autores canônicos, como Shelley e Virginia Woolf, a obscuros, como o francês François-Timoléon de Choisy (1644-1724) e a inglesa Elizabeth Barrett Browning (1806-1861).

O interesse pela antiga literatura europeia é mais um traço característico da obra de Fróes. Como nota o editor Sergio Cohn na apresentação de “Trilha”, ele ocupou um espaço próprio na literatura brasileira dos anos 1960, quando despontavam precursores da poesia marginal, como Waly Salomão e Torquato Neto, no Rio, e Roberto Piva e Claudio Willer, em São Paulo.

— Se me dissessem que eu era um poeta marginal, eu diria que os poetas são marginais desde François Villon (escritor francês do século XV, beberrão, boêmio e preso em várias ocasiões) . E Villon era marginal mesmo! Nunca me identifiquei com ideologia, partido, movimento literário. Tive compromisso com minha independência, que é a obrigação do poeta — diz Fróes.

A obstinação é tema de muitos poemas de “Trilha”, como “Introdução à arte das montanhas”, de 1995. Os versos sobre a disparada de um animal morro acima (“Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego/ mas não desiste de chegar ao ponto mais alto”) se tornam uma meditação sobre a natureza humana: “Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume./ Sente-se disperso entre as nuvens,/ acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,/ ainda, que agora tem de aprender a descer”.

— Meu caminho foi o do poeta que é um homem comum, com as limitações de um homem comum — diz Fróes, que se orgulha de ter feito “três gerações de leitores e amigos”. — Um poeta bem mais novo me disse uma vez que o que escrevi em 1968 é atual até hoje. Isso me encheu de força. Significa que não perdi meu tempo, que fui fiel à vocação que vi em mim.